Mano Brown, Ed Motta, Seu Jorge: lugar de quem, cara pálida?

Três artistas negros brasileiros se envolveram em controvérsias esta semana. Só uma delas é de verdade – a do Mano Brown. Para quem não acompanhou: Mano Brown foi detido na tarde de segunda feira, acusado de desobediência, desacato e resistência. Estava com documentos vencidos. Em condições normais, qualquer “celebridade” menor tipo, sei lá, Carlos Alberto da Nóbrega da Praça é Nossa, sairia sem problemas, talvez até dando um autógrafo.

Por ALEX ANTUNES, do Yahoo 

Mano conta que foi abusado, que encostaram nele à toa. Eu acredito. A polícia não gosta de Mano Brown, quer baixar sua crista há anos. Porque Mano Brown, à frente dos Racionais, assumiu um discurso de enfrentamento contra a “normalidade branca”: fosse a da mídia, fosse a da polícia. Ou seja, enfrentou todas as formas de controle, da mais abertamente repressiva às tentativas mais sutis de controle ou cooptação.

Funcionou. O suficiente para que em anos mais recentes ele tenha revisado um pouco a dureza do seu discurso, ampliado seu espectro político-musical, incluindo a relação com formas da expressão negra celebratórias e não-ostensivamente militantes. Uma das escolas de Brown, o hip-hop americano, é assim. Os caminhos para se contrapor ao racismo são não só “de esquerda” (denúncia e enfrentamento), mas também “de direita” (ostentação de poder e ganhos, por exemplo).

Numa sociedade influenciada pelo protestantismo, como a americana, essa forma brincalhona, ostentatória e provocativa não pega mal. Os rappers trollam (e se trollam) à vontade. Já no Brasil, em que o dna católico convergiu com a formação marxista preponderante na intelectualidade do século passado, acredita-se que há uma forma “certa” de enfrentar o sistema.

O discurso aqui passa forçosamente pela idéia do oprimido rompendo grilhões e se conscientizando. Esse conceito é recorrente nos anos 60/70, como na “pedagogia do oprimido”, de Paulo Freire; no “teatro do oprimido”, de Augusto Boal; na “teologia da libertação” da igreja latina etc. Necessariamente a conversa passa por alguma forma de martírio e redenção.

Mas não só rappers como Mano Brown e o veteraníssimo Thaide andaram se reciclando, como toda cultura de periferia, sob o impacto do funk, andou revendo essa cartilha. Um aspecto que costuma escapar a católicos e marxistas é que o consumo, visto de um ponto de vista mais tribal, como na juventude da classe c ascendente, não é necessariamente “alienante”, mas se integra ao sistema simbólico dela de uma forma não-branca, meio fora das regras simbólicas do capitalismo. É só ver o papel de certas marcas (Adidas, Nike) na cultura hip-hop.

Seu Jorge, nesta semana, mexeu meio que sem querer em um vespeiro ao dizer que o rock não é para negros. Ele é negro; falou de seu ponto de vista de carioca suburbano; não defendeu nenhuma tese bizarra. Mesmo assim, os “círculos roqueiros” (que na real são brancos pra chuchu, mas não querem abrir mão da nobreza da origem negra) tiveram um chilique com a declaração. Eu desenvolvo o assunto aqui: Seu Jorge “contra” o rock.

O problema é que se cobra de Seu Jorge um discurso de oprimido, ou no mínimo de ex-oprimido. E ele pensa em si mesmo como um artista internacional, radicado em Los Angeles, e despreocupado em cultivar maiores complexos de ex-faminto. Finalmente, hoje, foi a vez de Ed Motta, cuja postagem no facebook está rendendo mais repercussão do que Mano Brown e Seu Jorge.

Ed Motta é mesmo um esnobe. Se apresenta como gourmet e enófilo, e conhecedor do que a música popular internacional produziu de melhor. Tendo conhecido um pouco da coleção dele, posso atestar que a terceira alegação é verdade, nas outras não tenho competência para avaliar; meus amigos jornalistas de comes e bebes acham que é fraude.

Reclamando do público brazuca em seus shows no exterior, Ed escreveu, entre outras coisas, o seguinte: “o negócio é que vai uma turma mais simplória que nunca me acompanhou no Brasil, público de sertanejo, axé, pagode, que vem beber cerveja barata com camiseta apertada tipo jogador de futebol, com aquele relógio branco, e começa gritar nome de time”.

A declaração é elitista e desagradável, mas quem já cruzou com brasileiro no exterior sabe que existe sim uma tendência a micaretar, a exprimir um orgulho racial às vezes meio fora de lugar. Particularmente, eu consigo enxergar esse brasileiro de camisa apertada, gritando na hora errada. É território da trolagem, não da indignação (foto de um tuíte sobre o assunto).

Acontece que Ed Motta é apenas um esnobe folclórico, não um inimigo da brasilidade, como tem sido tratado. Não acho que ele não possa se comportar como um conde Chiquinho Scarpa, já que o conde Chiquinho Scarpa pode. Nem que ele tenha que estar “à esquerda” do Gregorio Duvivier. O esnobismo de Ed pertence apenas à relação entre ele e seus admiradores – senão você começa a se comportar como a polícia em relação ao Mano Brown, sentindo-se na obrigação de “colocá-lo em seu lugar”. Mas que lugar seria esse?

A nossa democracia precisa começar a se acostumar com o preto no lugar, err, “errado”.

 

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