Manu Dibango:“Meu domínio é a música e minha política é estar engajado musicalmente

David Corio/Redferns/Getty Images

Rendemos uma singela homenagem ao símbolo incontornável da música africana com a publicação de uma entrevista concedida em Abril de 2008, ocasião em que foi convidado pela revista “Africa Today”, em Luanda, para três concertos memoráveis.

Por Jomo Fortunato, do Jornal Angola 

Manu Dibango (Foto: David Corio/Redferns/Getty Images)

Sob a luz do luar que brilha de esperança, rompe o lirismo da sonoridade do saxofone, quebrando o silêncio da noite africana. A África dos ritmos velozes, na cadência das danças infinitas, a África das múltiplas cores, a África da tolerância, a África, berço de todas as artes. Plural, plástico e soba da africanidade musical é assim, Manu Dibango. É o nosso, Marabú, que leva num voo poético, a profundidade da África à compreensão e entendimento da cultura universal para as salas do mundo, onde fez ecoar a pulsação rítmica do batuque africano. Globalizado, irreverente e permeável, a sua música estabelecerá para a eternidade, a ponte fraterna entre a tradição e a modernidade. Simples mas não simplista, a música de Manu Dibango desafia as sensibilidades mais exigentes, numa perspectiva de valorização do múltiplo e integração do controverso, como dois motivos, profundos, de fruição do conhecimento artístico. E assim foi para a eternidade, pelo motivo mais inesperado, o nosso Rei, provavelmente o nosso Deus da música. Prestemos então a nossa singela vassalagem musical, nesta modesta entrevista.

Em que medida o conhecimento das culturas africanas e das suas mais importantes referências musicais, terá influenciado o seu processo criativo?
Em muito… em muito. Mas a génese da nossa arte, enquanto africanos, depende da situação geográfica e cultural onde nos encontramos, ou seja, se somos da África ocidental, austral ou central. No entanto, sabemos que somos praticamente todos bantu, culturalmente, e, por esta razão, há ligações culturais comuns. Em princípio, em África, a arte é sagrada. Se tivermos um espírito criativo, claro que tudo dependerá da forma como fomos educados e da relação que temos com a nossa própria criação, os nossos contextos familiares e as nossas tradições culturais serão mais úteis à nossa produção artística. Tudo começa na família, porque se o pai e a mãe não se entendem, temos logo à partida um factor de impedimento. Mas se no desenvolvimento da nossa vida o nosso crescimento for normal, então a repercussão será diferente. Nós fomos colonizados e temos, objectivamente, duas culturas. A africana, que nos é tradicional, e a modernidade, de tipo ocidental. O problema será encontrar o equilíbrio, entre estas duas culturas. Por termos estas duas possibilidades, criamos uma cultura que os outros não têm. Eles, refiro-me à cultura ocidental, trazem algo que podemos desconhecer mas que podemos transformar para encontrar o equilíbrio, muitas vezes difícil de concretizar, porque há sempre uma dominante. Eles, com a modernidade, pretendem ser os dominadores, eu na minha trajectória encontrei o equilíbrio. Transporto a minha africanidade pelo mundo. Nunca me defini, culturalmente americano, francês ou ocidental. Sou africano e toda a gente sabe. Tudo o que recebi na minha vida foi como africano, daí que eu tenha guardado a minha parte, culturalmente africana mas temos que ser abertos.

Em que proporção a tradição e modernidade coexistem na sua personalidade cultural?
A proporção é a abertura, simplesmente a abertura…

Qual é a recepção da sua música dentro e fora de África, ao nível do público e da crítica?
Os prémios e as medalhas que recebi no exterior, provam que o público que me ouve gosta da minha música, mesmo sabendo que não faço música para obter medalhas. As medalhas podem elevar-nos, se recebo alguma, em Angola ou nos Camarões, é por que elas testemunham um certo reconhecimento. No exterior sou Embaixador da UNESCO, cavaleiro, oficial e comendador das artes e letras em França.

E na América?
Na América, o “Soul Makossa”, gravada em 1972, foi considerada uma das músicas mais importantes do Século XX, eles tinham acabado de descobri-la. Nesta perspectiva, podemos considerar que é um reconhecimento internacional. Isso eu posso dizê-lo, porque é verdade.

Manu Dibango (Foto: Michael Ochs Archives/Getty Images)

A sua biografia artística já está documentada?
Sim. Há um livro com o título “Três quilos de café”escrito por mim e pela jornalista Danielle Roi, do jornal francês, “Le Monde”, editado em 1990, e um filme denominado, “Silêncio”, financiado pela televisão franco-alemã, “Arte”, e ontem vi a entrevista que dei, em 1982, e o concerto que fiz no Karl Marx, em Luanda. Para mim foi uma emoção incrível porque nunca tive acesso ao registo deste momento que foi extremamente importante porque participaram músicos, entre outros, os Kassav, que é, para mim, um documento referencial da minha carreira. Vocês aqui em Angola devem ter documentos fundamentais de músicos que até já estão falecidos, e eu tenho a sorte de estar em vida… (risos).

O álbum “La Jamaique” é fortemente influenciado pelo reggae. O que pensa da música do Bob Marley e do seu estilo?
Para mim é a revolução musical do Século XX, pois antes só havia a música ocidental, nomeadamente, a música inglesa e americana, que dominavam o mundo. O Bob Marley criou algo novo. É, no fundo, a voz do chamado Terceiro Mundo que é hoje conhecida como “World music”. O Bob Marley criou também uma postura filosófica, pois não há só música na sua postura artística, há também o pensamento rastafari. Por detrás da música havia uma religião. É uma música engajada, uma música de intervenção que abriu um novo universo para os músicos africanos, o reggae tornou-se uma música de reivindicação. Os africanos adoptaram esta música, como o fizeram com a rumba, anteriormente, que depois evoluiu para a música “bakongolesa”. No fundo é o regresso cultural dos barcos negreiros da escravatura. O Bob Marley revolucionou a música e eu tive a sorte de o conhecer. Em 1978, quando gravei na Jamaica, o meu estúdio estava situado num caminho próximo da casa onde ele morava, e tínhamos o hábito de falar pela manhã. Eu não estava de acordo com ele sobre alguns aspectos da figura que foi o Hailé Salassié da Etiópia, só que não revelei as minhas contrariedades, porque percebi que ele tinha os seus fantasmas e não é justo demolir os fantasmas das pessoas.

Será que a sua música pode mudar os caminhos da política africana e alterar, pela positiva, a situação política e o rumo social dos africanos?
Não tenho esta pretensão porque a minha música está do lado dos artistas. E os artistas têm que perceber que têm de trabalhar muito para o melhor de todos nós. Esta é a minha filosofia, eu não estou na política. O meu domínio é a música, e a minha política é estar engajado musicalmente. O facto de eu ser um exemplo para os jovens músicos é suficiente.

O estado actual da música africana satisfaz os seus sonhos, enquanto ícone musical do continente africano?
Os mecanismos de suporte da arte ainda não estão no seu devido lugar. Se notar, a arte esteve sempre mais avançada na história da humanidade. Temos de enquadrar este fenómeno e preparar o amanhã com qualidade e temos que embelezar, intelectualmente, os nossos países. Um país é sustentado pela sua cultura e esta é um factor de desenvolvimento económico, os nossos dirigentes têm de compreender isso. Quando gravei o “Soul Makossa”, que foi um grande sucesso mundial, nenhum homem de negócios africano tirou partido do café “Soul Makossa”. É necessário associar a cultura à economia. As pessoas têm de saber que os passos de dança do futebolista Roger Milla fizeram com que todos dançassem nos estádios. A cultura permite que se fale, positivamente, dos nossos países e terá que constituir, sempre, um valor acrescentado.

Há dois nomes renomados da música africana actual, Lokua Kanza e Richard Bona. Qual a sua opinião sobre estes dois artistas?
Eles têm um denominador comum, os dois já tocaram comigo. O Lokua Kanza começou comigo e dei-lhe um grande impulso, era vocalista da minha banda, e tocava guitarra nas primeiras partes dos meus espectáculos, a solo. Comigo era como se estivessem numa escola anónima. O meu baixista actual, do Soul Makossa Gang, já foi chefe da orquestra da Miriam Makeba. Não sou uma escola oficial, mas uma escola virtual.

Gravou com o músico angolano Derito?
Sim… ele gosta da minha música e trabalhámos juntos, num álbum que teve, entre outros, a participação do sul-africano Hug Masekela. Já fiz coisas com o Bonga, embora goste de fazer coisas com artistas jovens, conhecidos ou desconhecidos, como foi o caso do Derito. O que me interessa é tocar.

Manu, qual é o futuro da sua música?
A música é como a pintura, temos todas as cores. Utilizamos a cor reggae, a cor salsa… as matizes musicais são infinitas. Um músico não deve fazer sempre a mesma coisa, deve fazer algo que seja multiplicado pelo número de encontros que nos enriquecem. É como um diamante, tem várias facetas. O meu sonho é o de continuar a fazer o que tenho feito, até ao fim… e fico feliz por isso.

É comum pensar que a sua música pode dialogar e está contaminada com outros géneros… Quer comentar?
O meu propósito é levar a minha música ao nível das orquestras filarmónicas. Eu já fiz projectos com as orquestras de Paris, Amesterdão… e a minha música está escrita para ser executada a este nível.

Fale-nos da sua formação como músico. Frequentou algum conservatório?
Só tive professores. Historicamente temos que ter em conta a época, na verdade faço música profissional há cinquenta anos, mas frequentei a escola normal, em França, com quinze anos. Depois da guerra houve um acordo que permitia que os pais que tivessem meios, podiam enviar os seus filhos a estudar no então país colonizador. Tive um professor que me ensinou piano e só mais tarde aprendi saxofone mas a minha grande escola foi a vida. O meu pai queria que eu fosse advogado mas abandonei a escola para me dedicar à música. A minha escola foi a vida da qual ainda sou um eterno estudante, no entanto, o contacto com outros músicos foi fundamental para a minha formação como músico.

O que falta à generalidade da música africana?
A música está como está a África. Embora eu pense que o desporto e a música estão mais avançados, em relação a outros domínios. A África tem muitos desafios, e a União Africana tem que considerar a arte e a cultura como dois pilares destes grandes desafios. Temos que construir as nossas civilizações pela cultura. Eu gosto das pessoas que pensam e percebem a espiritualidade.

 

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