Margens moldam o rio da literatura brasileira na prosa de Cidinha da Silva

FONTEECOA, por Fred Di Giacomo
A mineira Cidinha da Silva lança o livro "Oh, margem! Reinventa os rios!" Imagem: Divulgação

Cidinha da Silva não está resfriada. Mas a prosadora e escritora mineira, tal qual Frank Sinatra décadas atrás, não está disponível para uma entrevista por vídeo ou por ligação que facilite uma tentativa de perfil literário da autora de “Um Exu em Nova York” (2018), obra vencedora do Prêmio da Biblioteca Nacional.

Cidinha está relançando as crônicas de “Oh, margem! Reinventa os rios!” em uma edição aumentada e organizada no ritmo ágil dos rios mineiros que fogem dos estouros de barragem, como foi o caso do Doce. Esta edição da editora Oficina Raquel inclui cinco textos inéditos, mais o prefácio do mestre Paulo Scott (finalista do Prêmio Jabuti deste ano com o fundamental “Marrom e Amarelo”).

Cidinha da Silva não está resfriada e eu não sou Gay Talese – o jornalista dândi americano que ajudou a moldar o jornalismo literário. No entanto, Cidinha pode responder minhas perguntas por e-mail em textos longos e deliciosos, cheios de nostalgia, combatividade, precisão e detalhes. “Cidinha escrevendo é Picasso com tinta, Ferrari com combustível – só que melhor”, escreveria Talese. É o ser em seu estado fundamental, a humana dotada de vocação fazendo o que seu corpo exige como dom. Mas não um dom divino vindo do nada. As histórias de Cidinha traçam exatamente a jornada que a levou a ser autora celebrada, com 17 livros, sendo um deles o finalista do Prêmio Jabuti (2019) e vencedor do Prêmio Rio Literatura “Explosão Feminista”, do qual é coautora.

Bom, Gay Talese já foi muito ecoado por aqui, é hora de escutarmos Cidinha da Silva, sua vida, sua arte. Sua clareza quando escreve que ” Não estamos nos firmando no lugar de contranarrativa, nós configuramos outras narrativas, nós agenciamos a mudança, no plural, de maneira polissêmica e polifônica. (…) Nesse jogo novo de alteridades há que se ouvir a voz e estudar detidamente a obra de cada autora ou autor negro da contemporaneidade. Chega de nos colocarem em caixinhas que respondem à percepção rasa do que somos, temos complexidade, exigimos ferramentas de análise mais sofisticadas.”

Com sua voz de rio caudaloso, da Silva traz as margens para o leme da história moldando, ágil, o fluxo da nossa literatura contemporânea.

Os brinquedos inventados da infância mineira

“As primeiras lembranças que tenho são do quintal da casa em Santa Efigênia, bairro do cinturão negro do centro de Belo Horizonte. Tinha mangueiras grandes e meu pai fazia balanço (que a gente chamava de gangorra) nos galhos mais fortes e nos divertíamos muito ali (eu e meus irmãos). As mangas, laranjas, goiabas que caíam, viravam bichos com patas de palitos de fósforo, olhos de caroço de limão ou laranja e muita imaginação. Dentro de casa tinha um campo de futebol de madeira pintado e entalhado por meu pai, no qual os jogadores eram pregos grandes, fixos. A bola era uma moeda de 20 centavos e a gente usava o dedo polegar como base para o indicador dar os pontapés na bola que ziguezagueava entre os pregos buscando o gol. Tinha uma alternativa de jogar com bola de gude e palito de picolé, mas gude corre demais. Um dos meus irmãos era muito bom de “finca”, gude e pipa, ele fazia pipas inigualáveis que voavam muito alto, por horas. Minha infância teve muita bola, jogo de queimada na rua, pega-pega.

Quando nos mudamos para uma cidade dormitório (Contagem), onde foi possível ter a sonhada casa própria, me lembro do sacrifício que meus pais fizeram para que eu continuasse estudando na escola em Santa Efigênia. Eu estava na primeira série, era setembro e não aceitavam transferências escolares naquela altura do ano; embora minhas notas fossem excelentes, eu também não poderia ser aprovada àquela altura porque havia uma carga horária mínima a cumprir. Em momento algum meus pais cogitaram a possibilidade de me deixar sem estudar ou de que eu fosse reprovada por frequência, a solução era me levar para a escola todos os dias, era uma distância imensa, talvez 100 quilômetros incluindo todo o trajeto feito em transporte precário que passava de 50 em 50 minutos (em Contagem), depois mais um ônibus que levava uns 15 minutos do centro de BH até a escola no bairro. Acho que nunca faltei à aula e me lembro que uma das tarefas do final de semana dos meus pais era fazer a tabelinha do meu deslocamento (havia um tio que morava conosco que ajudava também). Creio que ali, naquele cuidado deles comigo, nasceu minha compreensão da importância da escola, de aprender, dos estudos como um caminho possível de superação de dificuldades e desigualdades. Eu já tinha amor pela escola e o cuidado dos meus pais era para valorizar isso e foi a coisa mais preciosa que eles fizeram por mim, para mim, na primeira parte da infância. (…)”

“Espero o tempo de aglomerar para experimentar a sensação de ouvir pessoas cantando uma canção que é minha também.”

Eu levei a universidade para o universo de possibilidades dos meus pais

“Não sei se o ativismo ‘surge; assim por geração espontânea, ele vai sendo modelado, construído a partir certas percepções do mundo, pelas experiências, pela necessidade de transformar o mundo e de assumir protagonismo nessa transformação. Geledés foi a única organização política em que atuei, fiquei lá de 1991 a 2004. Esta instituição foi a maior e melhor escola que tive, a que me preparou para a vida e valeu/vale muito mais do que o doutoramento que faço, por exemplo. A chance de conviver e de aprender diariamente com Sueli Carneiro que experimentei ao longo de vários anos seguidos me possibilitaram um período de aprendizado político e transformação pessoal muito intensos. (…)

Minha adolescência foi a de uma menina negra comum, filha de uma família operária, morando numa cidade dormitório e que teve a sorte de contar com uma escola pública de boa qualidade. (…) Contagem era uma cidade industrial, com muitas fábricas de cimento que poluíam tudo, era uma espécie de Cubatão em Minas Gerais. Aos 10, 11 anos eu observava as mobilizações políticas das pessoas da cidade para lutar contra aquilo que, efetivamente nos matava, gerava problemas respiratórios graves, era uma luta para que essas empresas instalassem filtros. Havia caldeirarias também, a Mannesmann e acidentes aterrorizantes nos quais os operários caíam dentro dos caldeirões de metal fundido e experimentavam mortes dolorosíssimas, tive colegas que perderam o pai nessa situação. Em 1979 houve a primeira grande greve de professores que era concomitante à reorganização do movimento operário (isso eu soube depois), distensão da ditadura militar, acho que minha politização primeira veio daí. (…)

Outra coisa importante desse período eram as enchentes do rio Arrudas, as centenas de desabrigados, gente negra, aquilo me estarrecia muito. Ainda outra coisa que me apavorava eram as notícias sobre o Esquadrão da Morte, as conversas dos adultos que eu ouvia e guardava, eram coisas que a gente não comentava, eu não comentava com ninguém, mas eram frequentes nos programas policiais do rádio que justificavam a existência daqueles grupos armados que matavam as pessoas, davam notícia da ‘desova’ dos corpos. Eu via o medo das pessoas dos bairros mais miseráveis da região onde eles atuavam. Isso tudo formou o caldo de cultura da minha consciência política de menina. (…)

A escritora Cidinha Silva já atuou na Fundação Palmares e no Instituto Geledés  (Foto: Elaine Campos)

O Ensino Médio foi um período de muito estudo desde o primeiro ano, eu queria fazer universidade e nem sonhava em ter dinheiro para fazer cursinho pré-vestibular. Certa vez me perguntaram numa entrevista ‘se eu meus pais me incentivavam a cursar a universidade’ e eu respondi: ‘eu levei a universidade para o universo de possibilidades deles’. (…)”

Machado de Assis e Milton Nascimento

[Minhas primeiras leituras marcantes] foram os livros de Machado de Assis no colégio, eu era a única ou uma das únicas que gostava daquelas leituras. Os livros da coleção Vagalume eram muito divertidos e a coleção Para Gostar de Ler me apresentou a crônica, gênero que me encantou e despertou em mim o desejo de também ser cronista, de criar minhas próprias histórias.

A arte entrou na minha vida pelas canções que minha mãe e meu pai cantavam em casa, pelo rádio também, eu ouvi muito rádio. Os dois tinham voz bonita e afinada, minha mãe cantava as grandes cantoras: Ângela Maria, Nora Nei, Núbia Lafaiete, Elizeth Cardoso e Clara Nunes, a cantora que calava fundo em sua alma. Meu pai cantava o repertório de Jamelão, Orlando Silva, Silvio Caldas, Cauby Peixoto, Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Pena Branca e Xavantinho (daqui vem meu amor pela viola caipira). Meu pai tinha também discos de bolero e samba-canção. Os sambas-enredo das escolas de samba do Rio de Janeiro também são uma referência artística importante da minha infância. O piano popular de Benito de Paula também me embalou muito e o samba de Alcione (LPs e programa televisivo “Alerta Geral”), Martinho da Vila, Clementina de Jesus, Beth Carvalho, Jorginho do Império, Luís Ayrão, Agepê, Candeia, João Nogueira, Clara Nunes, eu ouvia esse pessoal em casa e no rádio. Tem uma estação de rádio em Minas que o neoliberalismo quer destruir chamada Inconfidência FM, a Brasileiríssima, que é responsável pelo excelente ouvido que tenho para a música. Minha formação musical se deu ouvindo essa estação de rádio na adolescência. Não posso deixar de citar Gonzagão e Milton Nascimento que conheci em provas de português da escola pública em que estudei e nunca mais larguei. Milton é a voz de Deus, como definiu Elis.”

“A arte entrou na minha vida pelas canções que minha mãe e meu pai cantavam”

História vs Letras

“O primeiro vestibular que fiz, em 1985 foi para a área de Biomédicas, eu estudava Bioquímica, Biofísica, Genética e Evolução, Embriologia, Citologia e Histologia, daí fui vendo que aquela não era a minha praia, além de ser um curso de período integral. No meio do primeiro semestre resolvi abandonar e curso e estudei para prestar outro vestibular. Tive dúvidas entre Letras e História que tinha tudo a ver com meu perfil político. Só que na minha ignorância, no meu desconhecimento e falta de convívio com pessoas que cursassem a universidade, eu achava que nos cursos de Letras as pessoas aprendiam a escrever e eu achava que sabia escrever, não precisava fazer universidade para aquilo, daí escolhi História que eu achava que me daria conhecimento. Esse era meu raciocínio rasteiro, mas foi uma boa escolha. Depois, na pós-graduação eu já sabia o que era a área de Letras e nunca optei por ela, no doutoramento, principalmente, quando eu já era uma escritora profissional, decidi com muita firmeza que não me interessava estudar nada nas áreas de Letras ou Literatura, porque tinha a impressão de que havia uma certa pressão para que escritoras e escritores negros enveredassem por esse caminho como uma forma de legitimação para o que escreviam.”

“Oh, margem! Reinventa os rios!”

Livro “Oh, margem! Reinventa os rios!” de Cidinha da Silva
Imagem: Divulgação

“A leitura de crônicas, dos cronistas mineiros Drummond, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos, despertou em mim o interesse de escrever. “Oh, margem!” é um livro querido de 2011 (Selo Povo, do Ferréz), o terceiro livro e o primeiro mais maduro. Agora, na Oficina Raquel, ele ganhou capa belíssima do meu conterrâneo ferreiro e escultor Jorge dos Anjos, um homem de Ogum que empresta obra de seu acervo para a capa do livro dedicado a dois outros filhos de Ogum, Sueli Carneiro e o poeta Ricardo Aleixo. Os textos foram reorganizados pela querida editora Raquel Menezes num fluxo de águas. Inseri alguns contos e crônicas novas, cortei outras e revi tudo, não se trata de um livro novo, mas tem muito frescor. Espero que ele venda bastante pois convenci a editora a imprimir mil livros ao invés de 500, como ela pretendia.”

Nova onda na literatura brasileira contrapondo-se à autoficção urbana e branca?

“Olha, nós não estamos nos firmando no lugar de contranarrativa, nós configuramos outras narrativas, nós agenciamos a mudança, no plural, de maneira polissêmica e polifônica. Somos prosadores como Itamar Vieira Junior e Jarid Arraes que também é poeta, como Mailson Furtado. Somos ensaístas como Djamila Ribeiro e é bem importante distinguir o que nós somos, os gêneros aos quais nos dedicamos, não somos uma maçaroca de autoras e autores pretos, temos alteridade. Nesse jogo novo de alteridades há que se ouvir a voz e estudar detidamente a obra de cada autora ou autor negro da contemporaneidade. Chega de nos colocarem em caixinhas que respondem à percepção rasa do que somos, temos complexidade, exigimos ferramentas de análise mais sofisticadas.”

“Sou 100% política, o que, obviamente, não significa que eu escreva panfletos, manifestos ou, seja ativista política. Sou escritora.”

Os futuros de Cidinha

“Meu romance para crianças “Kuami” será encenado em São Paulo e inspira uma investigação sobre o samba no mundo das crianças paulistanas (Bará Produções). Tenho um livreto para sair numa caixa de autoras da editora N-1 ainda este ano, organizada por Tatiana Nascimento. Está saindo do forno a 2ª edição do “Sobre-viventes!” (Pallas). Estou editando pela Kuanza Produções o terceiro volume da série dedicada às minhas melhores crônicas, chama-se “Amores entre iguais”. “O mar de Manu”, livro para crianças, será reeditado pela Autêntica. Em novembro, nos dias 17, 19, 24 e 26, ministro o curso “Vozes independentes no mercado editorial” pela Kuanza Produções (plataforma Zoom, inscrições abertas). Tem um livro de crônicas inéditas que sai pela Figura de Linguagem no início de 2021. Tenho uma composição (Lençóis) em parceria com a Luedji Luna no disco novo dela. Espero o tempo de aglomerar para experimentar a sensação de ouvir pessoas cantando uma canção que é minha também.

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