Marielle, um sonho para despertar

FONTEPor Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr, Do Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21

Hoje acordei tropeçando em meu sonho. Sabe aqueles dias que você se levanta da cama com se ainda estivesse dormindo? No andar dos passos a cortina do novo dia vai se abrindo, agente vai despertando e as imagens oníricas vão rapidamente se dissipando…

Do sonho lembro apenas de um detalhe: eu tinha sido convidado para dar uma palestra sobre Jaques Lacan e a perversão. Ao entrar no auditório, deparei-me com uma sala escura com todas as cadeiras vazias, havia apenas uma enorme tela branca com a seguinte frase escrita em vermelho: QUEM MANDOU MATAR MARIELLE? Caminhei em direção àquele telão como se precisasse tocar suas letras, mas no lugar delas surgiu um buraco na tela. De repente fui sendo aspirado para dentro dele, como se estivesse a adentrar um túnel, logo após, acordei.

Enquanto psicanalistas sabemos da importância dessas letras que fazem furos no real, permitindo-nos travessias, passagens, transposições. Sem letras não há desejos, metáforas, deslocamentos, construções e desconstruções. Ciente disso, Lacan escreveu um texto paradigmático no seu ensino: A instância da letra no inconsciente e a razão desde Freud, pois para o psicanalista francês, a genialidade de Freud além de insistir na tese dos sonhos como realizações alucinatórias de desejos, mostrou-nos o quanto eles possuem estatuto de letra.

Apesar dessas associações algo insistia em meus pensamentos: por que aquelas letras sumiram? Num afã interpretativo, logo pensei, seria o medo de que tudo isso caísse em esquecimento? Ou simplesmente o meu desejo de preencher aquele buraco com as letras materializadas nessa escrita. Talvez, entretanto, são tantos os buracos nessa história, pois qualquer sentido parece insuficiente: buracos dos famigerados projetis que atravessaram a lataria daquele carro para se alojar nos corpos indefesos de suas vítimas, buracos em nossa esperança por justiça, buracos na dignidade humana daqueles que movidos pelo ódio de si mesmo rasgaram a placa com o nome de Marielle, buracos das feridas abertas pela devastação da democracia em nosso país.

Diante de tantos buracos só nos resta contorná-los com letras; do contrário, seremos tragados pelos tempos sombrios que nos cerca. Mesmo porque, como já advertiu Freud, haverá sempre um impossível de significação em qualquer produção onírica. Precisamos apenas reconhecer algum traço de desejo que ali se faz realizar, por isso, a interpretação de um sonho diz respeito somente ao sonhador. Logo, não existe catálogo para o sentido dos sonhos, simplesmente porque, não é possível catalogar desejos.

Entre letras e buracos reconstruímos as nossas ficções. Teorizamos como forma de fazer rasgos no real. Com Marielle relançamos a nossa capacidade de sonhar e fazer face a todo tirano capaz de desprezar a potência e a capacidade subversiva da mulher negra, pobre e homossexual. Com Marielle vimos o quanto ainda estamos acorrentados a preconceitos e escravizados por uma lógica violentamente elitista, burguesa e xenofóbica. Mas, com Marielle aprendemos também que podemos despertar, superar nossas humanidades classistas e não sucumbir nos acovardando diante de uma passividade mórbida e complacente.

É preciso se levantar! Isso mesmo, ficar em Pé, erguer a cabeça e olhar para frente. Você ainda se pergunta como? Apesar dos incontáveis motivos, você ainda se queixa de desânimo e falta de força? Interroga-se sobre de onde virá a nossa inspiração? Ora, da força e da determinação da mulher negra que há séculos luta por justiça, reconhecimento e dignidade social nesse país. A determinação incansável dessas mulheres poderá nos resgatar dessa apatia e desse engodo de branquitude conservadora. São várias as guerreiras que tiveram a coragem de se levantar e chamar a nossa atenção para não sucumbir a barbárie, alertando-nos face a tentação de uma cômoda vitimização, fazendo-nos assim, despertar para a busca da construção de “redes de solidariedade política”. Tereza de Benguela, Carolina Maria de Jesus, Lélia Gonzales, Sueli Carneiro, Núbia Moreira, Luiza Helena de Bairros, Djamila Ribeiro, Laudelina de Campos Melo e tantas outras, são um exemplo disso.

No livro de Djamila: Quem tem medo do feminismo negro? a autora resgata um dos poemas de Maya Angelou: “Phenomenal woman”, publicado no livro And Still I Rise (1978). As letras a seguir poderão servir de inspiração para transpor esse pesadelo de olhos abertos que passamos a viver nos últimos meses, agoniados por essa náusea vertiginosa capaz de soterrar esperanças.

Acima de um passado que está enraizado na dor

Eu me levanto

Eu sou um oceano negro, vasto e irrequieto

Indo e vindo contra as marés, eu me levanto

Deixando para trás noites de terror e medo

Eu me levanto

Em uma madrugada que é maravilhosamente clara

Eu me levanto

Trazendo os dons que meus ancestrais deram

Eu sou o sonho e as esperanças dos escravizados

Eu me levanto

Eu me levanto

Eu me levanto!

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