Matemática, “Frozen” e Yemanjá se unem na arte negra de educar na Bahia 

FONTEPor André Santana, do UOL
Unindo contos de fada a mitologia dos orixás, professora usa a dança para romper preconceitos e valorizar cultura negra (Foto: Eduardo Lubisco)

“Toda dança tem história e toda história é sagrada”. Esse é o lema que orienta a dançarina e coreógrafa Jedjane Mirtes, 39, em sua trajetória no ensino da arte. Em mais de 20 anos de pesquisa sobre as manifestações da cultura popular, em especial da dança afro, a arte-educadora foi desenvolvendo possibilidades de interdisciplinaridades:

“Já foi comprovado que quando se leva arte para dentro da escola o aprendizado é mais fluente. É possível utilizar em todas as disciplinas. Por exemplo, a partir do ponto que trabalhamos com os números arábicos e romanos, é preciso que o estudante saiba que a matemática e a astrologia eram ciências já dominadas pelos povos africanos. Além de conhecer a história, perceber que a matemática está em tudo: no compasso da música, da dança, na exatidão dos movimentos”.

Neste sentido, Jedjane sugere a educadores a construção de atividades lúdicas. “É possível tocar um instrumento ou criar movimentos para o próprio corpo a partir de bases da contagem matemática. Tornando possível, com vontade e criatividade, fazer uma apresentação artística com essas bases”, completa.

Rainha negra

Jedjane Mirtes nasceu em uma família numerosa — a mãe teve três filhos biológicos e adotou mais seis crianças —, em um dos bairros mais populosos da capital baiana, Pernambués, onde iniciou suas experimentações artísticas, ainda na adolescência, em grupos de dança e no terno de reis da própria comunidade.

Participou das oficinas de formação artística do Cria (Centro de Referência Integral de Adolescentes), localizado no Centro Histórico de Salvador, tornando-se uma jovem multiplicadora. Fez formação técnica na Escola de Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia e concluiu graduação em Educação Física.

Mergulhou na dança dos blocos afro, participando de concursos como da Deusa do Ébano do Ilê Aiyê, um dos mais concorridos pelas mulheres negras de todo Brasil, chegando a conquistar o terceiro lugar. Em 2014, tornou-se a rainha do Malê Debalê, tradicional bloco da Bahia, que tem o mérito de levar “o maior balé afro do mundo” para as ruas durante o Carnaval de Salvador.

Jedjane brilhou no desfile do bloco naquele ano, mas também nos projetos de educação que o Malê Debalê mantém no bairro de Itapuã.

“Antes das apresentações, eu fazia questão de passar na escolinha que funcionava na sede do bloco, de sala em sala, com todo figurino, acessórios, maquiagem, para que as crianças pudessem ter essa imagem de uma mulher negra como rainha tão próxima delas. O título de rainha me fez ver a comunidade feminina de uma outra forma. Apesar de todo meu trabalho e trajetória como mulher negra, eu percebi que havia muito mais possibilidades. Afinal, eu queria representar tantas rainhas que foram silenciadas pela história e pela violência discriminatória do cotidiano”, conta.

(Foto: Jadesson do Vale)

Jedjane utiliza a experiência como rainha de bloco afro para se aproximar do universo infantil das princesas dos contos de fadas. “Eu utilizo as personagens da Frozen para falar de uma rainha que domina os mares, que também veste vestido azul e que é chamada pelo meu povo de Yemanjá. Assim como a história da princesa Merida, de Valente, serve para eu falar de Iansã, a guerreira da mitologia africana. Assim, eu conto para as crianças essas histórias e mostro os passos da dança dos orixás”, explica a educadora, sobre o trabalho de quebrar preconceitos e intolerâncias religiosas.

“Como pesquisadora da arte negra, criei esse projeto para inserir a cultura negra e sua história verdadeira dentro das temáticas do cotidiano. Desde a origem do nome da criança e da sua história familiar, até o reconhecimento de pequenos atos ‘heroicos’ dentro das experiências pessoais, valorizando sua história e comparando-a com grandes feitos sociais, dando-lhes ar de revolução”, detalha Jediane sobre a metodologia que chama de “arte negra de educar”.

Pernambués – quilombo urbano

Com o distanciamento físico provocado pela pandemia do novo coronavírus, Jedjane mantém suas aulas de cárdiodança (técnica de queima calórica dançante) em plataformas digitais e realiza lives semanais em seu perfil no Instagram para falar de dança, mas também de autoestima e autocuidado.

“Eu sempre pergunto como estão, se estão se cuidando, se olhando no espelho, valorizando sua beleza. Para muitas pessoas está sendo muito complicado ficar em casa, pois muitos lares são espaços de violência”, alerta.

Pernambués ocupa hoje o primeiro lugar em Salvador em número de casos confirmados da covid-19. São mais de 2 mil moradores contaminados no bairro de 64 mil habitantes (até 6/8, Salvador já havia ultrapassado a marca de 59.500 mil casos confirmados e 1928 mortes). .

“É preciso encontrar outra forma de conscientização da comunidade. A informação chegou de forma verticalizada pela mídia, com vários mitos e confusões do que é verdade ou não, do que pode ou não pode fazer e uma ordem: fique em casa. Mas como entender que é preciso ficar em espaços pequenos, desconfortáveis, se as pessoas se acostumaram a buscar nas ruas todas as suas necessidades?”, questiona.

Jedjane acredita na importância dos espaços comunitários de educação para reverter altos índices de contaminação causados, em parte, pela presença das pessoas nas ruas dos bairros populares. “Uma coisa é a pessoa receber uma ordem de ficar em casa, de usar máscara, vinda do ‘Jornal Nacional’, outra coisa é ouvir da professora da escola do bairro, dos profissionais de saúde do posto da comunidade e dos agentes que atuam nos projetos sociais, na associação comunitária, nos grupos culturais”, defende.

Apaixonada por seu bairro, Jedjane está agora envolvida na divulgação do documentário “Pernambués – Quilombo Urbano”, que tem roteiro e direção de Lúcio Lima, outro morador da comunidade, com produção e direção artística da própria Jedjane. Em maio deste ano, o filme teve exibição especial na TV pública da Bahia, foi disponibilizado por 24 horas no YouTube e agora segue sendo exibido em festivais.

“O filme conta a história do bairro a partir do seu passado de aquilombamento de pessoas negras e retrata seus moradores e suas trajetórias de resistência. É bem diferente das notícias tristes de violência que a mídia está acostumada a noticiar”, conta a dançarina, que é mãe de dois adolescentes: Isai Luiz, 18, e Kairu Oman, 12.

Sobre ser mãe de dois jovens negros, Jedjane diz: “Ser mãe nunca é uma tarefa fácil, ainda mais quando se é uma mãe jovem, negra, artista, solteira e periférica. Eu ensinei meus filhos que criança teria que ser livre e logo depois eu tento convencê-los que um jovem precisa estar mais em casa, fica mais próximo, mais seguro, usar sua voz no momento e nos espaços certos, porque vivemos em uma sociedade violenta, com racismo, discriminações e, agora, uma sociedade armada. Eu às vezes peço desculpas, mas também faço eles entenderem que tudo que fiz e faço é para conquistar um mundo melhor para mim e para eles”, reflete ela dando mais uma lição sobre educação.

-+=
Sair da versão mobile