Na reta final das olimpíadas de Paris 2024, a população brasileira teve muitas razões para comemorar: ganhamos nossas duas primeiras medalhas de ouro conquistadas por mulheres negras, nascidas em São Paulo e beneficiárias do Programa Bolsa Atleta, vinculado ao Ministério dos Esportes, financiado pelo Governo Federal.
O primeiro ouro veio da judoca e sargento do exército de 26 anos, Beatriz Souza, chamada afetuosamente de pelos fãs de Bia. Ela subiu no tatame pela primeira vez numa olimpíada esse ano, vencendo as duas melhores atletas do mundo na categoria +78kg: a campeã mundial francesa Romane Dicko e a segunda melhor do mundo, a atleta Israelense Raz Hershko.
Rebeca Andrade, ginasta de 25 anos, conquistou o segundo ouro e tornou-se a maior medalhista da história do Brasil, com 6 medalhas em olimpíadas. A vitória consolidou-se após a ginasta superar, na categoria solo, a americana Simone Biles, que possui 11 medalhas olímpicas e é considerada a melhor do mundo.
Após as cerimônias de premiação, uma característica em comum entre ambas as atletas se sobressaiu: Rebecca e Beatriz estão fortemente vinculadas ao cristianismo evangélico, segunda religião com mais adeptos no país (31%) e a primeira com mais fiéis negros, quantitativamente (59%)1.
Assim, de acordo com minhas pesquisas, as atletas fazem parte de uma nova forma de ser evangélico no país: fiéis que respeitam as diferenças entre os grupos sociais, se apropriam e celebram a cultura brasileira, cultivando sua fé, crença e práticas religiosas/espirituais pautadas na interpretação amorosa da Bíblia Sagrada e possuem um discurso racial de valorização da negritude. Nas entrevistas concedidas, Beatriz e Rebecca agradeceram enfaticamente a Deus e mencionam a fé, dedicação e importância da família em suas trajetórias.
Você pode estar pensando a partir de agora: “Ok, mas isso é o normal no Brasil! As pessoas acreditam em Deus e honram a família”. É justamente isso que pretendo ilustrar adiante. Essas mulheres são cidadãs brasileiras como você e eu, e a forma como estão vinculadas ao cristianismo evangélico e discursos justiça social, esperança e respeito à diversidade, são reflexo de um país profundamente religioso, que está em movimento.
Por exemplo, após ser provocada por um repórter para escolher a música que representaria sua trilha sonora da vitória, Bia pediu “Todavia me alegrarei”, da cantora gospel Sarah Beatriz. Um trecho dessa canção diz assim:
Eu tenho um Deus que não vai deixar / Essa luta me matar, o desespero me tomar / Por mais pressão que seja a situação / O controle ainda está na palma de Suas mãos.
Segundo o depoimento da prima de Bia à Folha de São Paulo, ela certamente iria a uma igreja evangélica após a luta, afim de agradecer pela vitória alcançada2.
Rebeca, em entrevista à revista Bazaar Brasil durante a preparação para as olimpíadas se autodeclarou evangélica e destacou a importância da oração enquanto um ritual, parte do seu cotidiano. Ela afirma: “Não tenho um ritual fixo, mas o que sempre faço é rezar. Sou evangélica e rezo para mim, minha família e minha equipe, até mesmo por quem não conheço mas precisa de ajuda. É algo que me acalma.”3
E, logo após uma das vitórias, declarou em entrevista à Cazé TV: “Deus estava me preparando para que eu conquistasse as minhas coisas hoje, sabe?!”. Em seguida, cantou o trecho de uma música do cantor gospel Jessé Aguiar:
Eu tô te preparando pra o novo tempo que já vai chegar, pra linda história que você vai interpretar/ calma está chegando, eu tô caprichando e você vai ver.
Vivendo no quinto país que mais comete feminicídio no mundo, as duas campeãs fazem questão de evidenciar o orgulho que sentem de suas trajetórias, destacando o fato de serem mulheres negras excepcionais em suas profissões. Elas engajam-se publicamente no combate ao racismo e sexismo por meio de suas vidas e discursos.
Em entrevista para o Alma Preta Jornalismo, Bia falou sobre como é ser uma mulher preta conquistando uma medalha de ouro em sua primeira Olimpíada:
“É incrível, me sinto muito honrada de poder servir de inspiração pra toda galera! Pretos e pretas do mundo todo, que vocês possam se inspirar em mim, espero estar abrindo portas e que venha todo mundo junto.”
Posteriormente a vitória, ainda usando o traje da competição, a judoca mandou uma mensagem para as pessoas negras: “gente, mulherada, pretos e pretas do mundo todo, é possível, acreditem!”4.
Rebeca, em clima de celebração pelo pódio mais aclamado das olimpíadas, cujas medalhas foram conquistadas por três mulheres negras, declarou o seguinte:
“A gente tinha feito isso no Mundial, e poder repetir isso agora em uma Olimpíada, onde o mundo inteiro está vendo a gente é mostrar a potência dos negros, mostrar que, independente das dificuldades, a gente pode, sim, fazer acontecer. Porque ou as pessoas aplaudem, ou elas engolem. E a gente está aqui mostrando que é possível. Eu estou muito orgulhosa”. 5
Essas duas atletas representam, abrem caminhos e inspiram outras mulheres a acreditar na força da cultura e do esporte como meios para a mudança social, a melhoria da autoestima de pessoas negras e o fortalecimento da cultura brasileira. Pois, ao mesmo tempo em que ambas têm uma relação com a cultura gospel, elas também se apropriam, reforçam e compartilham da arte que é produzida nacionalmente.
A exemplo disso, vimos a performance que garantiu o ouro da Rebeca na modalidade “solo”, executada ao som do pout-pourri de “End of Time”, de Beyoncé, “Movimento da Sanfoninha”, funk de Anitta, e “Baile de Favela”, do MC João. Segundo o jornalista Jairo Malta, do blog Sons da Perifa, a medalha “é um testemunho de como o ritmo (funk) impulsiona tanto artistas quanto atletas”, demonstrando a importância dessa manifestação cultural essencialmente brasileira.
Novos tempos estão chegando ao Brasil e nos mostram a força, o protagonismo e a diversidade da população negra. Por essa razão, precisamos estar atentas e abertas às diferentes manifestações de religiosidade, crença e espiritualidade que surgem como resultado da criatividade humana nas suas relações com a cultura. É necessário nos perguntarmos porque as representações midiáticas de evangélicos se encerram, na maioria das vezes, numa gramática voltada ao fundamentalismo e polarização política?!
Bia e Rebeca, além de marcarem a história conquistando as medalhas de ouro, são também duas mulheres de fé, conectadas com os céus e porta-vozes de uma geração que veio para espalhar esperança e recriar o significado de ser evangélica e negra no Brasil.
- Segundo dados do DATAFOLHA (2020). Disponível em: https://religiaoepoder.org.br/artigo/a-influencia-das-religioes-no-brasil/. ↩︎
- Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2024/08/desde-os-6-anos-nunca-houve-mais-nada-alem-do-judo-diz-mae-de-bia-souza.shtml ↩︎
- Entrevista completa disponível em: https://harpersbazaar.uol.com.br/estilo-de-vida/rebeca-andrade-conheca-a-rotina-da-medalhista-de-ouro/ ↩︎
- Em entrevista concedida à Cazé TV. ↩︎
- Entrevista concedida à Revista Caras. Disponível em: https://caras.com.br/esporte/rebeca-andrade-celebra-podio-com-mulheres-pretas-ou-aplaudem-ou-engolem.phtml ↩︎
Thayane Fernandes – É recifense, poeta, dj, bacharel em Ciências Sociais, mestra e doutoranda em Antropologia pela UFPE. Foi pesquisadora visitante no Canadá e Estados Unidos através de prêmios de pesquisa no exterior, passando também pelo Oriente Médio. É Antropóloga pública, feminista negra e consultora de Geledés – Instituto da Mulher Negra. Se dedica a investigar principalmente Cristianismo evangélico, conservadorismo, raça, arte, autodeterminação e imaginação cultural radical.