Medidas Socioeducativas: insustentabilidade desse sistema repressivo, que já nasceu abortado

FONTESibele Gabriela dos Santos e Leandro Bozzola Guitarrara enviado para o Portal Geledés
Centro de acolhimento do Degase com superlotação: dois adolescentes dormem na mesma cama Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

Se tem uma coisa que esse País sabe fazer é desumanizar e legitimar a morte de adolescentes e jovens negros. O projeto político dos homens brancos e cis-heteronormativos que se rotulam como homens de bem é promover a necropolítica e a aniquilação dos corpos indesejáveis.

O Brasil ocupa o ranking de 3ª maior população carcerária do mundo. E sabe qual é a cor dessa população? Sim, essa população tem cor, e é preta.

O Brasil foi o último país das Américas a “abolir” o sistema escravocrata. Esse abolir vem entre aspas mesmo, pois sabemos que abolição nunca existiu e o povo não branco continua sendo alvo de estratégias de dominação reinventadas para replicar um modelo formalmente extinto, mas que encontrou novas roupagens para se reproduzir na sociedade.

Somos o País com maior população negra fora do continente africano. Entretanto, nossos corpos continuam sendo alvo de uma política higienista e genocida.

Neste momento não iremos tratar sobre o sistema penal brasileiro. Nosso objetivo é trazer reflexões sobre as medidas socioeducativas e como esses adolescentes estão sendo protegidos pelas políticas públicas.

Constituição Federal e ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente –  são divisores de água, porém, o Brasil ainda padece de uma imensa lacuna de implementação. Experimentamos o paradoxo de contarmos com diplomas normativos considerados tão avançados e, ao mesmo tempo, apresentarmos baixa efetividade das políticas públicas voltadas à adolescência em cumprimento de medida socioeducativa. Infelizmente muitos operadores do direito e das políticas públicas ainda utilizam uma linguagem autoritária para se referir aos adolescentes. A concepção de adolescentes como sujeitos de direitos ainda é relegada a segundo plano mediante insistência infundada em se empregar termos que ainda remontam ao adolescente como objeto de direito, como por exemplo a terminologia “menor”, “adolescente criminoso”, “crime cometido por adolescente”, dentre tantas outras que ainda infestam vez e outra noticiários, peças processuais, planos de políticas públicas e quejandos.

Os serviços de proteção social ao adolescente em cumprimento de medida socioeducativa de liberdade assistida (LA) e de prestação de serviços à comunidade (PSC) são descriminados na Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais (2009). Tais serviços estão associados a Proteção Social Especial de Média Complexidade no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Têm por finalidade, conforme a aludida tipificação nacional, prover atenção socioassistencial e acompanhamento a adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto, determinadas judicialmente. Deve contribuir para o acesso a direitos e para a ressignificação de valores na vida pessoal e social desses adolescentes e jovens.

Não tenhamos dúvidas de que quando falamos sobre medidas socioeducativas estamos também falando de uma política seletiva, cuja tendência de retroalimentação é fomentada por raciocínios apriorísticos e descompromissados com a perquirição das reais causas do problema social que enseja o fenômeno infracional. A sociedade do espetáculo reivindica penas mais severas e a diminuição da idade penal como panaceias. Essa mesma sociedade fomenta o “sensacionalismo midiático” que reforça o senso comum a respeito dos atos infracionais executadas por adolescentes.  Produzem e reproduzem notícias sensacionalistas que colaboram com o imaginário da população no sentido de que adolescentes negros seriam violentos e marginais, esquecendo-se da seletividade ínsita ao sistema de repressão. Nesse processo de alienação, verifica-se que há um silêncio sobre toda forma de violência e violação de direitos que acometem esse segmento. Adolescentes passam pelo sistema de medidas socioeducativas em meio fechado e/ou meio aberto e continuam sendo seres invisíveis para sociedade e pelas Políticas Públicas, mas curiosamente, e de forma paralela, tornam-se visíveis para o sistema de repressão social, como alvos predispostos da filtragem colorista imersa no racismo institucional.

O Estatuto da Criança e do Adolescente é um marco para proteção desses segmentos, entretanto ainda não foi implementado em sua plenitude. Se todas as medidas de proteção integral previstas no Estatuto fossem colocadas em prática para o resgate da autonomia de adolescentes e suas famílias, certamente alcançaríamos um estágio em que as próprias políticas públicas não repressoras tornar-se-iam suficientes para a deslegitimação do sistema repressivo existente. 

Com relação à gestão do sistema socioeducativo, tal como pensada e idealizada no  Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), vemos que seus artigos continuam sendo invisibilizados pelos 3 Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). A maioria dos Municípios e Estados não elaboraram seus respectivos planos decenais de medidas socioeducativas em meio aberto, por exemplo.

Além das desproteções, adolescentes que cometeram atos infracionais são vítimas do racismo institucional. Passam pelo constrangimento de terem suas matrículas negadas por falta de documentos, preconceito por serem egressos do serviço de medidas e não são acompanhados por profissionais capacitados para essa demanda, o que impacta diretamente sobre a elevada taxa de evasão escolar desses adolescentes.

Inegavelmente, urge que políticas públicas atuem de forma permanente e continuada, não fragmentada, no sentido da desconstrução de que adolescentes negros são perigosos, quando em verdade são o alvo-padrão de um sistema cuja mira está viciada e cuja ineficiência e incapacidade já foram atestadas mesmo por olhos incautos.

O Sistema de Justiça está muito longe da realidade que acomete os adolescentes da periferia. Falta-lhe letramento racial.

É fundamental que operadores das políticas públicas do sistema de proteção a adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas e da Justiça questionem os privilégios seculares de manutenção da branquitude, conforme Milton Santos, atentos, inclusive, à falsa neutralidade do sistema judicial.

Repensemos, critiquemos, tenhamos coragem de criar novas estratégias de abordagem do que hoje denominamos fenômeno infracional na adolescência. Sabemos da insustentabilidade desse sistema repressivo, que  já nasceu abortado.

 

Autores

Sibele Gabriela dos Santos e Leandro Bozzola Guitarrara (Arquivo Pessoal)

Sibele Gabriela dos Santos, militante dos Direitos Humanos, abolicionista, assistente social, graduada em Serviço Social pela Unesp, Pós-graduada Políticas Públicas-SUAS, MBA em Administração Pública e Gerência de Cidades, curso profissional em Neurociência pela PUCRS, Mestranda em Planejamento e Análise de Políticas Públicas na Unesp, Pós-graduanda em Africanidades e Cultura Afro-Brasileira, Pós-graduanda em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global pela PUCRS e Líder do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco pelo Fundo Baobá.

Leandro Bozzola Guitarrara, advogado, Bacharel em Direito pela Unesp, Pós-graduado em Direito Previdenciário e Pós-graduando em Direito Público com Ênfase em Gestão Pública pelo Demásio.

 

Referências:

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 de outubro de 1988, Seção 1, p. 1 e ss. 

BARRETO, Luiz de Freitas Souza. Quanto vale a vida de uma pessoa negra? Portal Geledés: 2020. Disponível em: < https://www.geledes.org.br/quanto-vale-a-vida-de-uma-pessoa-negra/  >. Acesso em 14/08/2020.

______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Brasília: MDS, 2009c. Disponível em: . Acesso em: 19 ago. 2020.

MUNANGA, Kabengele. Superando o Racismo na escola. 2ª ed. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.
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