Medo da violência policial e de acusações injustas é maior entre a população negra do Rio

Diferentes estudos e pesquisas recentes têm apontado que, no Brasil, a violência se distribui de forma desigual. Um dos principais marcadores desta desigualdade é o perfil racial das vítimas: de cada dez pessoas assassinadas, sete são negras.

Do Nações Unidas no Brasil

Desde o fim de 2017, a campanha Vidas Negras da ONU Brasil tem pautado o tema da “filtragem racial” — submeter a abordagem policial, investigar e sentenciar mais pessoas de determinado grupo racial que de outros. Leia a reportagem completa sobre o tema.

Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. Foto: Agência Brasil/Tomaz Silva

Diferentes estudos e pesquisas recentes têm apontado que, no Brasil, a violência se distribui de forma desigual. Um dos principais marcadores desta desigualdade é o perfil racial das vítimas: de cada dez pessoas assassinadas, sete são negras.

A violência policial segue a tendência: dos 4.222 mortos em decorrência de intervenção policial em 2016, 72% eram negros. A sensação de insegurança também tem afetado os grupos raciais de formas distintas.

Segundo levantamento feito na cidade do Rio de Janeiro pelo instituto Datafolha em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o medo da violência policial, de acusações infundadas ou de ter um filho preso injustamente é maior entre a população negra e moradores de favelas.

De acordo com Samira Bueno, uma das diretoras do FBSP que participou da elaboração do levantamento, isso é resultado do modelo brasileiro de segurança pública.

“Esses medos têm a ver com a interação das comunidades com a polícia. Se você olha o perfil das vítimas da violência letal e de parte expressiva dos presos no Brasil é o mesmo: jovem e negro”, observa a pesquisadora.

Os números mais recentes sobre o sistema carcerário indicam que 64% das pessoas privadas de liberdade são negras, enquanto a proporção de negros e brancos na população geral é de 54% e 45%, respectivamente.

Morador de uma favela com Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na zona sul carioca, o estudante J., de 28 anos, conta que recentemente ele e outros quatro jovens foram abordados por policiais da UPP local quando saíam da comunidade em direção ao Aterro do Flamengo — conhecido local de lazer ao ar livre da cidade.

“Éramos duas mulheres e três homens, todos negros. Eles vieram, sem motivo, com uma revista dura, como se já tivessem certeza de que iam encontrar droga ou algo assim”, conta.

“Em uma outra vez, numa abordagem dentro da favela, cheguei a presenciar um policial comentar que se não estivéssemos na zona sul já poderiam ‘ter sumido com alguém’. Isso aconteceu depois de uma pessoa que estava sendo revistada não baixar a cabeça na hora”, relata.

Desde o fim de 2017, a campanha Vidas Negras da ONU Brasil tem pautado o tema da “filtragem racial” — submeter a abordagem policial, investigar e sentenciar mais pessoas de determinado grupo racial.

Foram lançados diferentes materiais sobre a questão, entre eles, um vídeo em que a campeã mundial e olímpica de judô Rafaela Silva fala de uma situação de abordagem que ela mesma viveu, no Rio.

“Não era uma blitz! Na hora, os policiais diminuíram a velocidade e foram para trás do meu táxi. Um bateu com a arma no vidro da janela e falou ‘desce’”, contou a atleta em entrevista concedida à equipe da campanha.

De acordo com Samira Bueno, trata-se de um problema que diz respeito a todo o sistema de Justiça criminal, não só à polícia. “A questão do racismo institucional é complexa. O policial que pratica inclusive também pode ser negro. São dinâmicas que têm uma relação com todo o imaginário sobre o que é o universo do crime e esse imaginário não é só da polícia”.

“As pessoas pensam que o criminoso é primeiro homem e, segundo, preto e pardo. Então, aqueles com esse perfil podem acabar correndo o risco de serem criminalizados a priori. A polícia é reflexo do sistema de Justiça criminal, de como ele opera. É um ciclo que vai da abordagem a criminalização”, explica.

Dados colhidos pela Defensoria Pública do estado do Rio de Janeiro mostram que, na capital, a maioria das pessoas detidas é negra. Entrevistando cerca de 12 mil presos em flagrante, levados a audiências de custódia entre 2015 e 2017, a pesquisa concluiu que 75% destes réus são negros.

A diretora de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Rio, Carolina Haber, revela que nas audiências de custódia, os brancos são a maior parte dos réus aos quais é concedida liberdade.

“Sim, há uma variação de acordo com a cor da pele. Quando analisamos os índices de soltura, em geral, separados pelos semestres em que fizemos o acompanhamento, observamos que no primeiro semestre 33% negros e 38% brancos foram soltos, no segundo, 32% e 39%, no terceiro, 47% e 54% e, no quarto, 39% e 46%”, destaca Haber.

Entre as pessoas que sofreram agressões ou maus-tratos no momento da prisão (35% do total), 80% são negras. Na totalidade dos casos de maus-tratos, sete em cada dez agressões foram praticadas por agentes públicos.

Pensando em uma solução para algumas das modalidades de conduta abusiva de agentes públicos, ativistas dos direitos humanos criaram no Rio o Defezap, um serviço que recebe vídeos denunciando atuações delituosas de agentes de segurança pública.

Seus idealizadores o chamam de “ferramenta de autodefesa contra ‘esculachos’”. Lana Souza, da equipe do Defezap, ressalta que os casos passam por uma apuração para saber se o comportamento flagrado — na maioria das vezes, por câmeras de celular — está de acordo com os procedimentos ensinados na academia de polícia.

“O principal trabalho é a identificação de padrões de violações, que se repetem em territórios diferentes, em dias diferentes, que são cometidos por agentes diferentes”, explica ela, para quem é possível afirmar que a maioria dos usuários do Defezap é negra.

Desde maio de 2016, o serviço recebeu cerca de 250 vídeos e auxiliou a encaminhar mais de cem investigações de violações cometidas por agentes públicos.

Samira Bueno lembra que a discriminação por parte de representantes do poder público na segurança não é admitida por eles. “Vão sempre responder que não abordam por causa da cor. Não é uma coisa racionalmente explicada pelos operadores e isso é uma das complexidades”.

“Na cabeça daquele policial, a pessoa tem características que a tornam suspeita. No protocolo, na teoria, no que é ensinado, a abordagem tem que ser a mesma em todos os casos. A questão é como se diminui a distância entre o que se aprende e o que se faz na rua”, diz.

Os principais acordos internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil preveem a eliminação de todas as formas de discriminação. Alguns destes tratados abordam explicitamente a discriminação racial.

Ana Cláudia Pereira, oficial de Projeto em Gênero, Raça e Etnia do Fundo de População da ONU (UNFPA), chama atenção para o destaque dado por um destes documentos internacionais ao combate à filtragem racial.

“A Declaração da Conferência Internacional contra o Racismo, a Discriminação Racial e Intolerâncias Correlatas, endossada pelo Brasil, incita os Estados a tomar medidas eficientes para eliminar o fenômeno conhecido como ‘filtragem racial’, definido como o uso, por agentes do Estado, de elementos raciais para submeter pessoas a atividades investigatórias ou associá-las a atividades criminais”, lembra.

 

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