Perguntam por que eu não gosto que me chamem ou que chamem meus pares, negros e negras, de morenos e morenas. E não só reclamo como também corrijo, afirmando: é preto, é preta. Não quero ser o fiscalizador da minha ou da melanina alheia, mas saiba: isso de embranquecer o outro ofende.

por Higor Faria

Primeiramente quero dizer que não tenho nada contra a palavra moreno e com quem seja moreno. Nada! Esse texto não fala dessas pessoas. Fala sobre as implicações de quem usa o vocativo ‘moreno’ para um negro (explicado isso, espero que ninguém desvie a discussão para esse lado, combinado?).

Ao chamar uma pessoa negra de morena, não só a cor dela é apagada, como também todas as suas marcas de luta e resistência de cinco séculos de um Brasil racista. Isso afasta esse preto que está sendo embranquecido da sua identidade – o que acaba sendo mais efetivo (e prejudicial) se esse indivíduo ainda não tiver se reconhecido negro. Como escrevi em “Quando tirei minha negritude do armário”, o processo de se assumir e se orgulhar da sua etnia pode ser longo, dado o contexto de inferiorização que negros são expostos cotidianamente.

Assim, ao contribuir para o afastamento desse negro de sua identidade, o distanciamento de seu grupo é inevitável. Da mesma forma que há uma diluição do fenótipo, há uma diluição do coletivo. Consequentemente, há uma quebra de diálogo, a perpetuação de uma inconsciência negra e o enfraquecimento da luta.

Normalmente, vejo esse vocativo aparecendo em situações nas quais negros atingem algum espaço de poder/representatividade, ou transitem em meios hegemonicamente brancos, ou ainda quando recebem um elogio. Nessas configurações e em outras existentes, está errado chamar um negro de moreno. E, por mais que você não perceba (ou não queira perceber), no meio de todas elas, há um quê de racismo ligado historicamente ao dominante e ao dominado.

Por vezes, quando um negro atinge uma posição de poder ou de representatividade e transita em meios hegemonicamente brancos,ele não é reconhecido como negro por quem compartilha esses mesmos espaços. Historicamente, ele não pertence a esses lugares — seu “habitat natural” seria à margem. A não ser na música e no esporte (Sovik, 2004), o negro brasileiro não ocupa espaços de poder e de representatividade social, nem caminha nos que são hegemonicamente brancos. Para o outro que transita e faz parte de lugares de prestígio, um negro seria o corpo estranho não legitimado de presença. Então, a única forma desse intruso ter conseguido adentrar o meio é que ele tenha alguma coisa que o aproxime dos historicamente dominantes, os brancos. Ou seja, algo que o torne “não tão negro assim”. Seria o entoado “moreno” — mesmo de pele escura, de cabelo crespo e de nariz largo — ainda assim um “moreno”. Afinal, “não é natural” que um negro atinja um patamar alto.

Outra situação é a do elogio. Para quem fala que uma negra, é uma “morena bonita”, por exemplo, só consigo enxergar três explicações possíveis. A primeira é que, para alguns, as palavras negra e preta sejam tabus. Não são! Pode falar em voz alta, se liberte! A segunda explicação (ligada a primeira) é que alguns possam — ainda — achar que esses termos e suas variações de gênero são pejorativos, ou que inferiorizam, beirando o xingamento. E que, por isso, não podem completar um elogio, visto que se tornaria antitético um polo negativo e um positivo na mesma oração, certo? Errado! Esse é um pensamento racista. Essas palavras não diminuem ninguém. Elas exprimem a condição do indivíduo enquanto ser e fazer parte de um grupo, além de trazer consigo contextos históricos. Por fim, a terceira explicação (ligada às duas anteriores) é que alguns consideram o termo ‘moreno’ “superior”, podendo maximizar o elogio. Enquanto a palavra negra inferioriza, a morena agregar valor. Igualmente errado! Reproduzir esse pensamento, é (in)conscientemente concordar com a estrutura racista que coloca a branquitude numa posição de superioridade, sendo o termo moreno elogioso por estar mais próximo do branco que o negro.

Fica a lição: não nos embranqueça! Preto é preto, moreno é moreno.Chamar uma pessoa negra de morena desconstrói, simbolicamente, toda uma identidade e um grupo social. E o resultado pode ser um negro em posição de destaque nacional dizendo, em 2005, que é branco (Alô, Ronaldinho Fenômeno! Meu nêgo, vamos rever essa identidade étnica e essa responsabilidade social).

Entenda: não use suas palavras para apagar a minha cor. Como diria o Ilê Aiyê, “se você está de ofender, é só chamá-lo de moreno, pode crê. É desrespeito à raça, é alienação”.

 

 

 


Higor Faria é preto, publicitário, estuda masculinidade negra e escreve no //medium.com/@higorfaria”