Memória Colonial. Sei o que fizeste no século passado

O maior museu do mundo sobre África, em Bruxelas, reabriu com uma narrativa que inclui o ponto de vista dos africanos.

Por Telma Miguel, do Contacto

Foto: Telma Miguel

De vez em quando, um país é forçado a olhar para trás. E o que descobre nem sempre é bonito. Portugal anda às voltas com a sua longa herança colonial e a abertura de um Museu dos Descobrimentos desencadeou uma polémica que uma recente crónica considerada racista da historiadora Maria de Fátima Bonifácio voltou a reacender. Nos EUA, considera-se o pagamento de indemnizações a descendentes de escravos, ao mesmo tempo que o seu presidente manda congressistas voltarem para os seus países. A França prepara-se para devolver centenas de artefatos pilhados na era colonial e a Grã-Bretanha iniciou um diálogo para devolver bronzes da Nigéria. A Bélgica teve também recentemente o seu momento de acordar para o passado com a reabertura do Museu Real para a África Central (MRAC), uma jóia da coroa belga durante décadas congelada no tempo. E um testemunho do brutal passado quando o rei Leopoldo II fez do Congo a sua quinta.

Trazer para os nossos dias e mudar a narrativa do último museu colonial foi o desafio de Guido Gryseels, quando tomou posse como director do Museu Real para a África Central, há 18 anos. Vindo de Roma, onde durante 15 anos fora director da FAO (a agência da ONU sobre alimentação e agricultura), e com um passado sobretudo ligado à investigação científica, Gryseels confrontou-se à chegada ao museu, em 2001, com “ exatamente a mesma exposição que tinha visto em criança, no começo dos anos 50. A exposição permanente não mudara desde 1956. Portanto, ainda estávamos a mostrar a visão da Bélgica sobre a África antes da independência do Congo, que foi em 1960”. E embora a sua missão fosse sobretudo dar novo fôlego à investigação (que ocupa 75% dos recursos da instituição), rapidamente percebeu que era o museu, que tinha cristalizado, o que mais precisava de levar uma volta urgente. Em primeiro lugar, diz Gryseels, porque “o edifício tem na sua própria arquitectura um cunho colonial muito forte. Por exemplo, no seu interior, está gravado 45 vezes o duplo L do Rei Leopoldo II. Era preciso também libertá-lo um pouco desse cariz”.

Guido Gryseels ( AP )

O coração das trevas

O Museu Real para a África Central foi erigido em 1898 na localidade de Tervuren, às portas de Bruxelas. No ano anterior, para os jardins do que era então conhecido como o Palácio das Colónias, Leopoldo II trouxera 267 congoleses que foram exibidos num zoo humano, na altura um espectáculo popular. No decorrer da mostra, onde também foram expostos artefatos etnográficos, sete dos congoleses forçados a manter as suas roupas originais no Inverno europeu, morreram de constipações e gripes. Mas o sucesso da afluência de público, com mais de um milhão de belgas a visitar o parque de Tervuren, levaria à criação do Museu Real para a Africa Central no Palácio das Colónias. E ao longo da sua existência o museu apresentou o ponto de vista do colonizador.

“ A existência de estátuas com títulos como ‘A Bélgica traz a civilização ao Congo’, e uma visão dos congoleses como um povo primitivo e bárbaro, levava a que fossemos acusados de ser o último museu colonial do mundo. Era urgente mudar para um discurso mais honesto e realista”. Em 2013 o museu fechou para só reabrir em 8 de Dezembro de 2018, após um investimento total de 74 milhões de euros aplicados na grande reabilitação do velho edifício (incluindo uma nova cobertura), construção de um novo com auditórios, loja e cafetaria, além da produção da nova exposição que consumiu 9 milhões.

O objectivo era preparar o velho e grande museu para o século XXI. Mais fácil atualizar a infraestrutura, mais complexo reabilitar o discurso.”Queríamos fazer uma exposição sobre a África de hoje com um olhar muito mais crítico sobre o passado colonial . Isso só seria alcançado se criássemos uma colaboração muito estreita com a comunidade e a diáspora africana. Não é possível fazer um museu sobre África sem incluir os africanos”.

A participação da comunidade africana começou assim que se foi desenhada a estratégia para a reformulação do museu, conta Gryseels. “Dois anos depois, os representantes dos países africanos na Bélgica organizaram-se, criando o COMRAF (comité de diáspora africana e do museu africano), que se reunia mensalmente para avaliar e discutir a renovação do programa educativo e das exposições temporárias que foram feitas. A actual exposição permanente (que desde que abriu recebe em média 8 mil visitantes por mês) foi construída passo a passo. “Houve uma sequência de exposições temporárias. Começámos com uma em 2001, que se chamava Exit Congo, sobre como as coleções chegaram aqui a Tervuren. Foram trazidas por missionários, por professores, por funcionários públicos, soldados, e algumas vezes através de força militar brutal. Muitos dos nosso objetos vieram de saques militares”. O segundo passo deu-se em 2005, com a exposição A memória do Congo: o passado colonial. E nesta, uma exposição enorme, que ocupava 1.500 m2, a violência exercida no Congo pelo Rei Leopoldo II que de 1885 a 1908 deteve pessoalmente a propriedade do Estado Livre do Congo torna-se evidente, bem como o modelo colonial paternalista que se lhe sucedeu, com o denominado Congo Belga, quando graças ao escândalo internacional gerado pelos horrores que Leopoldo II perpretava, o território foi anexado ao Estado belga. Foram as atrocidades de Leopoldo II, que se diz ter dizimado metade da população de congoleses, que inspiraria Joseph Conrad a escrever, em 1899, o Coração das Trevas, mais tarde o fio condutor de Apocalipse Now, de Francis Ford Coppola.

O Atomium a fazer sombra ao último zoo humano

A exposição temporária seguinte, em 2010, seria já sobre a Independência do Congo, a marcar o 50º aniversário. “E foi essencialmente sob o ponto de vista dos congoleses”. O trabalho de preparação destas exposições, uma longa investigação científica e museológica em diálogo com representantes africanos,’num processo de aprendizagem muito intenso e muito importante para todos’, resultou na exposição patente, com quatro galerias temáticas: rituais e cerimónias; linguagem e música; biodiversidade; recursos .

Finalmente, em 2013, as salas fechariam para reabrirem cinco a nos depois, mostrando aos belgas um passado desconhecido e um museu novo. “Até há 20 anos, 90% dos belgas estavam convencidos que só tínhamos feito o bem em África. Abrimos estradas, construímos hospitais, as crianças iam à escola. E só agora as pessoas descobriram que o Estado Livre do Congo foi um sistema muito brutal de governo, com centenas de milhares de pessoas mortas, e que o sistema colonial belga que se sucedeu, em 1908, foi muito paternalista. A primeira universidade do Congo Belga só abriu em 1956, apenas quatro anos antes da independência. Quando o Congo se tornou independente só havia 27 licenciados. E tiveram que governar um país que é 84 vezes o tamanho da Bélgica. Muito depressa caiu no caos”.

Entre os belgas, explica Gryseels,”tem havido muito pouca conversa sobre este passado. Há muitas crianças que não sabem que tivemos uma colónia. É por isso que quando fizemos a renovação também fizemos uma campanha para que as escolas ensinassem a história colonial como parte do currículo”.

E não foi senão há muito pouco tempo que “a Bélgica começou a ter uma visão crítica do seu passado colonial”, explica o director do MRAC. A reabertura do museu reacendeu o debate, com a grande divulgação nos media belgas. Hoje, estarão vivos ainda alguns belgas que em 1958, por ocasião da Exposição Mundial em Bruxelas, viram sob o Atomium- o símbolo do progresso científico – um dos últimos zoos humanos com centenas de congolenses, em trajes típicos, fechados em jaulas de bambu.

A nova exposição não nega os horrores do passado, mas, diz Gryseels, dá-lhe um novo contexto e ‘coloca o africano de hoje num lugar central’. Logo no início há um ringue com estátuas que foram recolhidas do percurso da exposição. “Retratam africanos de acordo com os estereótipos e como primitivos. Hoje queremos projetar uma visão diferente. Podem ser vistas, mas já não jogam um papel na exposição permanente”. Também o busto de Leopoldo II, feito em marfim, está agora numa vitrine onde se explica o contexto em que cerca de 80 mil elefantes foram mortos no Estado Livre do Congo, para fortuna do monarca. “Na Grande Rotunda, que tem impressos oito vezes o nome de Leopoldo II, foi retirada a grande estátua do rei que recebia os visitantes com o mote ‘A Bélgica leva a civilização ao Congo’, e, em vez disso, ocupando agora o centro, está o busto em madeira ‘Novo fôlego, o florescente Congo exibe esperança e otimismo por África’, feito por um artista africano. E isso entra em diálogo com as outras estátuas dos nichos, muitas delas com um pendor claramente racista ou imperialista. Na galeria memorial tínhamos o nome dos 1.500 belgas mortos, agora também temos uma obra encomendada a um artista africano que projeta com a luz do sol os nomes dos congolenses mortos”.

Proteger a herança africana: uma questão a resolver

Nem toda a gente estará feliz com o resultado. “Eu próprio estou 80% contente. Algumas galerias estão muito bem, outras precisam de ser completadas. A informação histórica não está suficientemente clara. É um processo, não está acabado”, diz Gryseels. Já a extrema-direita, uma força crescente na Bélgica flamenga, paradoxalmente “não está interessada no museu. Porque como são contra a família real, tudo o que questione o seu passado para eles é útil”. Os africanos serão “cerca de 15% dos visitantes e “temos recebido uma grande maioria de elogios. Mas também há quem ache que não fizemos o suficiente ou que é impossível fazer uma história moderna num edifício com uma marca colonialista tão grande. Esses acham que que devíamos ter deixado como estava e chamar-lhe museu da colonização”.

Quanto à devolução de peças aos seus países de origem, o MRAC tem uma posição “aberta e construtiva”. Em 1968, o então presidente da República Democrática do Congo (RDC), Mobutu Sese Seko proferiu um discurso nas Nações Unidas onde defendeu que a herança cultural africana deveria voltar para África. Nessa altura, houve uma negociação entre o governo belga e a RDC e 116 peças do museu de Tervuren foram devolvidas. Mas hoje, a situação é diferente. “ Nunca mais nos foi pedido porque a RDC não tem um museu, nem espaço de armazenamento. Os coreanos estão agora a construir um edifício em Kinshasa e quando estiver pronto talvez peçam. Mas o que podemos fazer é ajudar e treinar as pessoas para garantir o bom funcionamento deste novo museu. Sou também a favor de digitalizar grande parte da nossa coleção como arquivos, filmes, documentos, música e devolver em forma digital. Mas é um trabalho de longo prazo. Atualmente, temos uma grande parceria científica com a RDC, em áreas que vão da Biologia, à história, à criação de sistemas de alarme”.

Por outro lado, neste momento, “a RDC é um estado falhado, numa situação de calamidade. Tudo o que devolvessemos seria roubado no dia seguinte ”. Mas no geral, Gryseels defende que uma boa parte da herança cultural africana deveria regressar aos países de origem, mas não a totalidade, nem as peças que foram adquiridas por meios legítimos. “É uma vergonha que tanta dessa herança esteja cá. Os objectos mais simbólicos devem ser devolvidos e também aqueles que foram pilhados. Mas acho que nenhum país africano quer a devolução de tudo. O primeiro passo será fornecer uma cópia dos nossos inventários. No ano passado, o director do museu do Ruanda , que era o responsável da comissão que estava a identificar a herança cultural do Ruanda na Europa dizia-me que nem sabia onde começar. Não sabia onde estava o quê. Umas pessoas dizem que está na Alemanha outras que está no Vaticano.”

A ambição do ‘último museu colonial do mundo’ é a de passar a ser visto como a primeira instituição de vanguarda no conhecimento e investigação sobre África, e passar de exemplo sobre o que não devia ter sido feito a exemplo de tudo o que poderá o futuro trazer.

 

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