Mestiçagem, harmonia e branqueamento: quem tem medo do homem negro?

Apesar das nuances e interconexões entre ambas, existem basicamente duas interpretações sobre o modelo de relações raciais no Brasil: a primeira está relacionada com a dimensão harmoniosa desse modelo, seus defensores alegam que apesar da escravidão negra no Brasil, de profundas desigualdades raciais fruto desse processo e das constantes práticas discriminatórias, o modelo brasileiro seria superior àqueles implantados em países como EUA e África do Sul, paradigmáticos para estas comparações.

por Henrique Restier da Costa Souza, no Justificando

Segundo essa interpretação os conflitos sociais na sociedade brasileira seriam diluídos pelo convívio, intimidade e afetividade nos contatos entre negros e brancos, desprovidos de ódios e conflitos raciais explícitos, gerando aquilo que chamamos nas palavras do etnólogo Carlos Moore “o mitoideologia da democracia racial” (2012)[1]. Já a outra perspectiva, (da qual este texto se vincula) postula que apesar da convivência amistosa em determinados contextos, geralmente “no território afetivo do negro”[2] constrangimentos, humilhações e violências de toda sorte, são experiências recorrentes da população negra em ambientes predominantemente brancos e que as:

“… desigualdades raciais não poderiam ser superadas porque seriam partes intrínsecas e necessárias do próprio modelo. No interior desse ponto de vista, são as disparidades nas condições socioeconômicas que garantem a qualidade dos modelos de interação entre brancos e negros no Brasil.”[3].

Isto é, só haveria confraternização e harmonia entre esses grupos, na medida em que haja assimetrias entre eles, que devem saber de antemão suas respectivas posições e as endossem enquanto verdades, não almejando qualquer mudança qualitativa nessa dinâmica. Assim, seria indispensável ao próprio padrão das relações inter-raciais no Brasil, o conformismo dos subalternizados e as prerrogativas dos subordinadores, recaindo sobre os negros o ônus para a manutenção desse “amistoso sistema”. Isto é, não “existiria” o racismo no Brasil contanto que o negro soubesse o seu lugar. E nós sabemos que lugar seria esse. Não é mero acaso que pessoas negras em destaque, principalmente na mídia, sejam alvo de agressões verbais, intimidações e discursos ressentidos.

Outro aspecto é que a narrativa da mestiçagem estimula sua romantização, especialmente no período escravocrata, minimizando a violência estrutural que a engendrou. Longe disso, “… a submissão sexual do conjunto das mulheres do segmento conquistado e subalternizado foi imposta de modo vertical e unilateral, por meio do abuso irrestrito. Por esse motivo, a política de miscigenação latino-americana foi, sobretudo, um grande crime contra a mulher africana e indígena” (MOORE, 2012, p.218). E, portanto, não pode “… ser evocada de modo algum em termos abstratos” (MOORE, 2012, p. 219).

Os homens negros e o patriarcado branco

Por mais contraditório que possa parecer, o baixo status social do homem negro ocorre justamente por ele ser um homem de outro grupo sócio-racial, que rivaliza com os homens brancos pela conquista das oportunidades de poder social, recursos e acesso às mulheres (pela ótica heterossexual). Em razão disso, o patriarcado branco busca a eliminação progressiva de todos os seus potenciais concorrentes, usando para tal propósito todos os meios necessários[4].

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Assim, é sintomático as altas taxas de homicídios de homens negros, seu encarceramento em massa, exorbitantes índices de desemprego e de população de rua, pobreza, política de drogas punitivista, elevados percentuais de doenças psicológicas, câncer na próstata, etc. A investida contra o desenvolvimento econômico, político e social dos homens negros cria diversos problemas internos ao seu grupo, inclusive na desestruturação da família negra e seu papel como pai.
O pai negro

O esforço em confiscar a paternidade negra através dos mecanismos racistas e sexistas da masculinidade supremacista branca é determinante para o seu sucesso como modelo a ser seguido e valorizado. O núcleo familiar negro pode ser uma “célula social” importante de transmissão de memórias, valores culturais, éticos e ancestrais da matriz africana diaspórica. A fragmentação dessa base, com um pai ausente ou debilitado e amargo por problemas psicológicos e econômicos, atinge em cheio essa importante organização social. Já o pai amoroso, feliz e presente potencializa aspectos ligados à segurança, união e ao antirracismo.

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Por esse ângulo, nas famílias inter-raciais o pai negro continua sendo um símbolo importante para a composição de um imaginário positivo sobre a masculinidade negra, influenciando não só as convicções de sua companheira, mas também de seus filhos, que poderão se relacionar com sua ascendência africana de forma saudável e afirmativa.

Ainda mais se levarmos em conta que a ideologia da mestiçagem estimula imagens de relacionamentos afetivos inter-raciais como genuíno sinal de harmonia na sociedade brasileira, supondo que o casal e as crianças desses relacionamentos seriam a “prova ideológica de nossa hipotética tolerância no plano das relações raciais…” (PAIXÃO, 2014, p. 304), desconsiderando as possíveis discriminações presentes nessas relações e/ou contra elas.

Dessa forma, a mestiçagem é instrumentalizada ideologicamente, deslocando a responsabilidade do Estado brasileiro em promover a equidade racial para o âmbito privado, como se o racismo e os problemas estruturais advindo dele fossem resolvidos na cama.

Miscigenação e branqueamento: o papel das mulheres

De acordo com certas teorias que circulavam na Europa no final do século XIX, e que foram adaptadas pelos intelectuais brasileiros, os homens brancos, seriam os responsáveis pela miscigenação, para o branqueamento do povo brasileiro. O fruto desse processo seria os filhos mestiços cada vez mais claros, resultado da seleção natural, o que no fim, resultaria em um tipo brasileiro: o “branco dos trópicos”.

Um indivíduo moldado pela inteligência dos brancos e pelos atributos físicos de indígenas e negros. Esse era o sonho das elites brancas nacionais, no entanto havia um entrave para que essa fantasia fosse realizada: o homem negro.

A antropóloga Laura Moutinho, ao analisar as relações inter-raciais na literatura brasileira do fim do século XIX e início do XX, notou que as mulheres teriam suas feminilidades vinculadas ao útero, ou seja, “a de reproduzir a espécie” (MOUTINHO, 2003, p. 169)[5]. Além disso, ao “racializarmos” esse papel nota-se que mulheres negras e brancas possuíam “missões” distintas dentro do ideal de branqueamento: a primeira deveria cumprir o papel de branquear a população brasileira através do contato sexual com o homem branco (de maneira geral, através de relações fora do casamento), enquanto a segunda deveria manter a “pureza” de seu útero para conservar a branquitude (dentro do matrimônio).

Esse tipo de discurso se encontra com fartura nos ditos populares como, por exemplo, “barriga suja”, na qual uma mulher (geralmente branca) está grávida de um homem negro e provavelmente seu filho nascerá mais escuro que ela, dessa forma, o elemento “poluidor” dessa equação é o homem negro.

Seu oposto é outro ditado, o de “limpar a barriga”, em que uma mulher (geralmente negra) grávida de um homem branco estaria “lavando” a “mancha negra” de seu sangue e contribuindo para o “melhoramento da raça”. Dessa perspectiva, o principal oponente do homem branco é o homem negro, o agente “enegrecedor” dos futuros brasileiros.

Aliás, se há uma preocupação por parte da supremacia branca, quanto à fertilidade da mulher negra, maior ainda é o temor que esses filhos sejam meninos negros e que tenham um pai financeiramente realizado e consciente de seu papel como homem negro na luta pela emancipação de seu povo. Felizmente eles existem.

O rei da selva

Vejam, não há nenhuma pretensão desse texto em regular e estabelecer regras morais nas escolhas afetivas de homens e mulheres negras, tão pouco prescrever comportamentos supostamente exemplares de ativismo negro, dado que o racismo já cumpre bem o papel de saquear nossas oportunidades, sabotar nossas potencialidades e coibir nossas escolhas.

A proposta foi, através de uma leitura masculina, elaborar uma breve crítica aos fundamentos e objetivos da ideologia da mestiçagem, (e não da miscigenação em si) que de maneira geral procura fragilizar a imagem e autoestima dos homens negros, colocando como modelo universal de masculinidade o homem branco, visando dentre outras coisas, ao rompimento dos laços de solidariedade e afetividade entre homens e mulheres negras.

Ao compreendermos o funcionamento ideológico da mestiçagem, alicerçada nos valores da branquitude, nos preparamos para usar todos os meios necessários no enfrentamento ao racismo à brasileira. Nas palavras de KL Jay (DJ dos Racionais MC´s) “os pretos estão em território inimigo… os pretos têm que andar igual leão na rua, igual leão”[6].

Leões senhores, sejamos leões!

Henrique Restier da Costa Souza é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em Relações Étnico-raciais pelo Centro Federal Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ)  e Doutorando em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP/UERJ).


[1] MOORE, Carlos Wedderburn. Racismo e Sociedade: Novas Bases Epistemológicas para entender o Racismo. Minas Gerais: Nandyala, 2012.

[2] SOVIK, Liv. Aqui ninguém é branco. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009.

[3] PAIXÃO, Marcelo A Lenda da Modernidade Encantada: por uma crítica ao pensamento social brasileiro sobre relações raciais e projeto de Estado Nação. Curitiba: Editora CRV, 2014.

[4] Expressão recorrente nos discursos de Malcolm X.

[5] MOUTINHO, Laura. Raça, cor e desejo. São Paulo: UNESP, 2003.

[6] Entrevista de KL Jay para a TV Carta.

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