“Meu sonho é liderar multinacional de tecnologia”, diz gerente do Google

FONTEUniversa, por Marcelle Souza
Imagem: Renão Fotografia/Divulgação

Aos 31 anos, ela quer mudar o mundo. Gaúcha de Pelotas, Lisiane Lemos cresceu sem pensar nos limites, mas em como podia fazer seus desejos se tornarem realidade. “A leitura sempre foi o meu passaporte para esse novo mundo. Assim eu comecei a sonhar”, diz ela, que desejou ser psicóloga, tentou ser advogada, mas se encontrou mesmo quando entrou no mundo corporativo.

Lisiane trabalhou na Microsoft e hoje é gerente de novos negócios do Google, além de professora universitária, palestrante e membro do conselho consultivo do Fundo de População das Nações Unidas. Em 2017, entrou na lista da Forbes como uma das pessoas mais influentes com menos de 30 anos, a Forbes Under 30.

É cofundadora da Conselheira 101, um programa para o desenvolvimento de lideranças negras, e já foi voluntária em diversas iniciativas sobre igualdade racial e de gênero, diversidade e tecnologia. “Não existe Lisiane corporativa e Lisiane pessoa comprometida com a causa. Eu sou uma só. Por exemplo, se eu vou falar de tecnologia, vou falar também de racismo algorítmico”, afirma.

Filha de funcionários públicos, Lisiane aprendeu que uma carreira de sucesso é resultado de muito esforço, mas também de saber valorizar seus pontos fortes e buscar conexão com as pessoas que admira.

Em Pelotas (RS) desde o início de março (“Cheguei para uma visita de 72h, que viraram seis meses”), ela diz que não abre mão do cochilo depois do almoço, mas que tem trabalhado mais desde o início da pandemia. “Sinto falta da convivência, de sair para almoçar, de ver os amigos”, diz.

Em entrevista a Universa, Lisiane conta como deu cada passo na carreira, quem são as pessoas que lhe inspiram e como pequenas ações podem aumentar a diversidade nas empresas. “Enquanto a gente olhar todos esses convites de live online e todo mundo parecer igual, está errado. Sobre isso a gente tem poder de mudança.”

UNIVERSA – Você é formada em direito, como foi parar na área de tecnologia?

LISIANE LEMOS – A tecnologia me escolheu. Nunca sonhei, nem nos meus sonhos mais ousados, em trabalhar na Microsoft ou no Google. Isso nunca passou pela minha cabeça. No início, eu queria ser psicóloga e, para mim, hoje a bandeira da saúde mental para populações vulneráveis ainda é uma coisa muito importante. Eu fiz vestibular para psicologia, mas só tinha o curso na universidade particular e eu não tinha grana. Então, fui fazer direito porque passei [na Universidade Federal de Pelotas].

Me apaixonei por educação em direitos humanos, fui trabalhar com isso. A minha mãe diz que a gente só sonha com o que a gente vê. Ela sonhava em ser professora universitária porque quando ela ia com a minha avó nas casas em que ela limpava, ela via que as professoras universitárias viajavam, conheciam o mundo. O mais longe que eu via era a universidade, e o meu sonho era ser diretora da faculdade de direito. Eu queria a minha foto no meio do auditório da faculdade, e fui trabalhando nesse sentido.

Os meus pais ganhavam juntos, em 2007, o que um estagiário de uma grande empresa ganha hoje. E eles ainda tinham que alimentar dois filhos. Um dia um amigo me falou de uma ONG de jovens universitários, a Aiesec, e quis trazer para Pelotas. Esse foi o meu primeiro contato com o mundo dos negócios.

A organização era um meio de eu conhecer outros países, porque eu não tinha grana, e de realizar o meu grande sonho de morar no continente africano. O terceiro setor me trouxe esse aprendizado de gestão, de fazer grandes movimentações sem um centavo no bolso, que é a criatividade do povo pobre. Pobre faz milagre com pouco dinheiro.

Em um dos eventos da Aiesec, eu vi que não queria mais o direito, queria o mundo corporativo. E mudou tudo. Claro que eu tive que fazer um acordo com a minha mãe, de terminar a faculdade e passar no Exame da Ordem. Mas foram duas coisas que me fizeram abandonar o direito: essa experiência e uma audiência que eu fiz no final da faculdade.

Eu adorava ação de pensão, porque criança não vive de vento. Só que me traumatizou. Antes de chegar na audiência, eu descobri que a mulher tinha sofrido violência doméstica do cara que não pagava pensão. Quando eu cheguei na audiência, tinha vontade de eu mesma agredir o cara. Vi que não tinha maturidade para lidar com essas coisas do direito. A gente não conseguiu ter um parecer favorável, porque ele estava desempregado, era alcoólatra. Vi que aquilo não era para mim.

E quando você decidiu que queria trabalhar em uma grande empresa? Como você se planejou?

Uma pessoa ousada, né? [risos] Por isso que eu disse que a tecnologia me encontrou. O que eu ensino para as pessoas é que, quanto mais você restringe, mais difícil fica. Então eu restringi, mas nem tanto. Eu queria trabalhar em uma multinacional, no setor de vendas e queria morar em São Paulo. Comecei a ativar a minha rede de networking, falar para as pessoas “quero um emprego que atinja essas três coisas. O que você tem aí para mim?”.

Fiz entrevista para tudo que você pode imaginar, de meio de pagamento até construção. E como chegou para mim essa vaga na Microsoft? Um ex-chefe da Aiesesc contou para outro, que contou para outro que eu estava procurando um emprego nessas três diretrizes. Por isso a importância de falar o que você está buscando.

Para a entrevista, eu já tinha estudado a empresa e sobre linguagem corporal. Eu brinco que sou uma stalker corporativa profissional, então já tinha buscado sobre os meus avaliadores. Eu só não tinha o nome de uma pessoa, que foi a mais impactante, o executivo que fez eu sonhar com a carreira. E aí começou essa jornada dupla. Sempre deixei muito claro que não existe Lisiane corporativa e Lisiane pessoa comprometida com a causa. Eu sou uma só.

Por exemplo, se eu vou falar de tecnologia, vou falar também de racismo algorítmico. Se for falar sobre governo, vou falar sobre democratização do acesso à tecnologia, porque isso junta as duas coisas que eu mais amo na vida.

E como terminou a minha jornada na Microsoft? Foram anos muito felizes. E eu vi que chegou um ponto em que precisava de uma assessoria profissional, e contratei uma consultoria para me ajudar. Aí descobri duas coisas: que preciso que a minha família esteja feliz e que quero para a minha vida um cargo de alta liderança.

Então, o meu grande sonho é liderar uma multinacional de tecnologia. Eu estou sempre perseguindo isso e tenho que estar em um lugar onde estou sempre aprendendo. Nessa análise, eu vi que queria ser gerente, ter uma equipe, um poder de mudança grande; e queria uma carreira internacional.

O Google apareceu e disse “eu posso fazer o seu plano virar realidade”. Por que o Google me atraiu? Eu falo que são sinais do universo. Eu entrei no Google no dia em que lançaram o programa de estágio para jovens negros, o meu processo foi feito por recurtadoras negras e a vaga chegou até mim pelo AfroGooglers, que é o grupo de funcionários negros. Foi uma aposta do Google também, porque fui trabalhar com agência de publicidade, sem nunca ter pisado em uma.

E como você fez para se adaptar mesmo sem experiência nessa área? 

Eu não penso no que eu não tenho, mas no que tenho e posso oferecer. Quando eu fui para a Microsoft, eles precisavam de alguém que trabalhassem com vendas e governo. Eu tinha pouca experiência em vendas, mas tinha disposição para aprender e tinha conhecimento técnico do direito. Quando a coisa estava muito feia, eu levava para a minha zona de conforto, que eram contratos, e voltava.

Eu invisto muito em estar sempre atualizada, assino newsletter de grandes consultorias e esses dias entrei em um grupo de mulheres e perguntei “o que vocês leem?”. Eu tenho essa curiosidade constante.

Estou sempre pensando na frente, quais são as habilidades que vão querer, quais são as pesquisas que estão saindo. Eu sempre penso no que eu posso oferecer para o outro, o que de conhecimento técnico eu tenho e o meu cliente não tem. O [jornalista Gilberto] Dimenstein disse que a gente é do tamanho do que a gente compartilha. Isso é uma máxima para mim.

Essa semana, eu recebi um email de uma pessoa que viu uma palestra minha há dois anos e disse “quando eu vi você falando ali na frente, eu comecei a sonhar que podia ir mais alto, e hoje é o meu primeiro dia na empresa que sempre sonhei em trabalhar. Queria te dizer que você teve influência nisso”. É esse tipo de influência que eu quero ter no mundo. Ás vezes me dizem “eu quero ser igual a você”, e eu respondo “não, você pode ser muito melhor”.

Você já sofreu com síndrome da impostora? 

Eu já tive, mas eu não tenho mais. Eu sou consciente das minhas limitações. Agora que eu entrei [no Google], sei que não vou saber de produto. Não é que eles erraram na contratação. É ter clareza sobre o que você veio fazer nesse lugar. O que mitiga a síndrome do impostor? É você chegar para o seu gerente e perguntar: por que você me contratou? Porque às vezes não é sobre a descrição da vaga, mas sobre o que você agrega nesse time.

E foi isso que uma gerente me disse: “eu contratei você para parar a bola, para trazer estabilidade para o time, para trazer insights de negócio diferentes, que ninguém traz”. Não é sobre conversão, sobre clique e as coisas que eu não vou conseguir fazer. Eu me frustro? Sim, mas eu também entendo que eu não vou conseguir fazer tudo. Eu já tive [síndrome da impostora], mas agora eu fico assim “é, eu sou legal mesmo”.

O ano em que eu mais tive síndrome do impostor foi quando fui contratada para uma posição em que eu não tinha senioridade suficiente, que eu não estava preparada. Foi um erro meu e foi um erro da empresa. Eu não acerto tudo, mas não erro todas as vezes.

E quais foram os momentos mais difíceis da sua carreira?

Acho que é sempre difícil dar tchau. Então, todas as vezes em que eu encerrei ciclos foram muito difíceis. Quando eu decidi que não queria ser advogada, que não queria trabalhar com direito, quando eu voltei do intercâmbio em Moçambique sem emprego e sem dinheiro, quando eu decidi ir para São Paulo, onde eu tinha um só amigo. Eu deixei grandes amigos, deixei empresas e organizações de que eu gostava muito, mas sempre saí com as portas abertas.

Quem são as pessoas que te inspiram?

Uma galera. A gente é muito resultado das pessoas do nosso círculo próximo. Eu tenho muitos conhecidos e poucos amigos. As minhas grandes referências estão em casa, os meus pais, o meu marido e o meu irmão são a minha consultoria número um para decisões pessoais e profissionais. E meu círculo próximo de amigas. Eu tenho também muita sorte que os meus ídolos viraram meus amigos — como o Gustavo Werneck, que é o presidente da Gerdau, um cara que eu admiro muito e é meu mentor.

Eu curto muito andar com pessoas que sabem mais do que eu. E não vou usar o termo inteligência, porque leva a uma questão de estudo, e não é sobre isso. É sobre sabedoria, ter mais experiência de vida. Quase todas as minhas amigas são mais velhas e já passaram por isso. Também sou viciada em biografias, eu gosto de aprender com os acertos e erros das outras pessoas.

Neste ano, tivemos casos de diversidade com grande repercussão, como o da Natura, que fez uma campanha de Dia dos Pais com o Tammy Miranda, e da Magazine Luiza, que abriu um processo de seleção só para pessoas negras. Nos dois casos, as ações das empresas subiram. Você acha que as companhias perceberam que diversidade também dá lucro? 

Eu acho que não é uma questão de perceber. A gente está vendo o resultado do trabalho de muitos anos, de muita gente. Eu sempre falo que o movimento não começou comigo. Há três ou quatro anos, eu fui para a convenção do Magazine Luiza falar sobre a questão racial para toda a ponta de vendas deles. Então não é sobre agora. Talvez o ambiente esteja mais propício com a mudança do coronavírus e empresas que não tenham uma jornada tão madura e que não tiveram essas discussões antes se encorajem a partir dessas ações.

O professor Pedro Jaime está estudando desde a década de 1970 os profissionais negros evoluindo no mercado corporativo. E a gente está saindo de um cenário onde os profissionais negros se invisibilizavam, não gostavam de holofote, porque isso era prejudicial, para esse de hoje, em que a gente faz programas de ações afirmativas.

Eu não acho que as empresas descobriram que é lucrativo, é mais o fato de que estamos em um momento propício a mudanças e novas revoluções, porque a pandemia veio para reescrever a nossa história. A gente está mais introspectivo, mais empático e mais aberto a conversar sobre temas dolorosos, como a questão racial neste país. 

O que você acha que a sociedade precisa fazer para levar minorias para altos cargos executivos? 

O principal é o desenvolvimento de um senso crítico a partir do nosso poder de mudança. Parece complexo, mas é simples. Por exemplo, eu sou um gestor de eventos, olho o line up do negócio e só tem homens brancos. [Então digo:] “Olha, eu preciso trazer gente diferente aqui”. E quando a gente começar a trazer essas vozes, influencia o ecossistema. Um gestor que tem vagas pode pressionar o RH para trazer candidatos negros.

Se você for fazer entrevistas para o seu canal, pode trazer pessoas de backgrounds diferentes. E eu acho que é importante reforçar: não é trazer pessoas de minorias para falar sobre diversidade, é trazer pessoas de minorias para falar sobre o que elas entendem, e se diversidade é o que elas entendem, ótimo. Mas, se não é?

Enquanto a gente olhar todos esses convites de live online e todo mundo parecer igual, está errado. Sobre isso a gente tem poder de mudança. Não é o governo, não são outros setores.

Qual foi o conselho mais valioso que você recebeu no início da sua carreira? E qual conselho você dá para jovens em início de carreira?

O conselho mais valioso que recebi foi: guarde 20% do seu salário. É sério. Eu descobri em um ponto da minha vida que tranquilidade financeira é muito importante, porque eu venho de uma família de endividados, de emergentes, e educação financeira é uma coisa que o povo não tem.

No momento em que você tem autonomia financeira, você consegue ter liberdade para sonhar, para fazer as mudanças, porque se tudo der errado, você tem um colchão. Esse é um ótimo conselho e que mudou muita coisa. E o que eu dou para as novas gerações é “a gente só sonha com o que a gente vê”.

Isso significa estudar coisas diferentes, estar com pessoas diferentes. O meu livro favorito quando criança era “Volta ao Mundo em 80 dias” e o mais longe que eu tinha ido não era nem no Uruguai, que é aqui do lado de Pelotas, porque a gente não tinha carro, era de busão mesmo. Então, a leitura sempre foi o meu passaporte para esse novo mundo. E aí eu comecei a sonhar.

Por isso é tão importante um programa de conselheiras. Toda terça-feira, eu estou reunida com 20 mulheres negras que têm mais de 15 anos de experiência no mercado. Então eu torno o meu sonho palpável. Eu vejo a Vania Neves, que foi escolhida como líder de inovação no segmento de saúde, vejo a Elisangela Almeida, que é de finanças de uma startup de agronegócio, e começo a criar novas referências. Só assim a gente pode sonhar mais alto e entender as melhores e piores práticas.

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