Minha cor chega primeiro. Reflexões sobre a experiência de ser uma mulher negra

FONTEPor Fabiola Christovão Inacio da Silva, enviado para o Portal Geledés
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Desde o momento do meu nascimento até meus derradeiros suspiros, estarei sozinha. De fato, a experiência de viver é solitária, não há ninguém além de mim mesma que esteja comigo ininterruptamente. Mas a solidão a qual me refiro não é essa. Trata-se de uma solidão estrutural, que está lá fora, no mundo externo, e que não é do meu controle.

Solidão e faltas – todas as que puder elencar – são sinônimos da experiência corporal negra, principalmente da experiência corporal feminina negra. Nascemos em meio a um mundo construído em narrativas românticas em que a solidão não é bem quista. No entanto, sabemos nós, mulheres negras, desde a mais tenra idade que essa narrativa não se aplica a nós. Já sabemos, mesmo sem saber.

A maioria de nós nasceu em lares partidos, por isso é bem provável que não saibamos o que de fato é o amor. Este não está em nossos lares da mesma forma em que aparece nos lares mais abastados e, obviamente, brancos da sociedade. Aprendemos que o amor é ausência, invalidação e abandono – é o que nos cabe, segundo a opressão. Ora, para o racismo nós não somos sujeitos dignos, logo, amor não é algo que nos possa ser dado ou que possamos experimentar em completude.

Grande parte das meninas cresce assistindo aos filmes de princesas brancas encontrando seus príncipes brancos encantados. É fato que a idealização do amor romântico é prejudicial para nós mulheres e que a narrativa nunca encontrará respaldo na realidade, porém, quando da experiência do relacionar-se, as mulheres brancas – ou negras de pele mais clara – têm maior probabilidade de encontrar o amor, pois o sonho e a concretização do amor são mais palpáveis, e viver experiências mais românticas e menos degradantes.

Relacionar-se enquanto mulher negra é um trabalho hercúleo. Por vezes chegamos aos vinte anos sem nem nunca termos dado um beijo, sem nunca termos um namorado se quer. Nada. Quando encontramos um homem negro que queira se relacionar nos percebemos em grande lucro, privilegiadas. Se nós enveredamos pelos relacionamentos inter-raciais percebemos que aí, de fato, amor é coisa ainda mais rara, uma vez que toda a lógica de dominação e opressão salta no relacionamento. As raras mulheres negras que encontram o amor, no outro que for, são extremamente privilegiadas. Mas, amor deveria ser um privilégio?

No ambiente familiar o amor se apresenta de forma balizadora, é algo que dá suporte, mas é duro e objetivo no sentido de que ele para no campo do corpo. A configuração se dá, porque o racismo impede que tais pessoas tenham acesso aos conhecimentos e ao entendimento da subjetividade humana. É possível que entendam de forma instintiva, mas carecem de ferramentas para que seja algo mais substancial.

Em muitas de nossas famílias a figura paterna é como um enfeite de estante: está lá, mas nada faz. Quando não é desse modo, a figura masculina, ou paterna, é secundária – quem manda nos lares são as mulheres. Estas, acostumadas com a dureza da vida, se relacionam de forma dura com seus filhos. Não é por mal, mas sintoma do racismo estrutural. Não há espaço para o acolhimento, escuta, sentimentos etc. É engolir o sapo e seguir. É uma exigência de força cruel.

Outra crueldade é o mercado de trabalho. A dificuldade que mulheres negras têm em conseguir um emprego que se encaixe as suas qualificações é gigante. E as dificuldades só aumentam se você for uma mulher negra com ensino superior. Se souber outro idioma é certo que irão te preterir ainda mais. O empregador – que obviamente é um homem branco em seus quarenta anos – até questionará como você conseguiu todas as qualificações e, se ousar fazer uma boa redação, perguntará a responsável pelo RH se a internet estava mesmo desligada quando da hora da prova de redação.

Em todas as áreas da vida minha cor chega primeiro. Não importa quais qualificações eu tenha, meus talentos, minhas habilidades, opiniões etc. Nada importa se sou negra. Não sou um ser humano. Parece que meu destino é a subalternidade, mesmo que faça tremendos esforços para que não seja assim. Não sou eu quem controla a estrutura. Meu corpo carrega a marca da desumanização e objetificação imposta pela estrutura racista desta sociedade. Não há permissão de se ser um indivíduo único se, antes de ser o que sou em meu mundo interior, já sou o que foi determinado que eu fosse.

Tenho que lutar para provar que aquilo que foi marcado em meu corpo não se correlaciona com quem sou. Em vez de a minha cor ser só uma cor, ela se torna um fator impeditivo do meu desenvolvimento como um ser humano, cerceia meus direitos fundamentais e me priva até das experiências mais prosaicas. Essa estrutura é tão cruel que me põe em uma espécie de guerra comigo mesma para que eu prove para ela que sou minimamente digna, ou diferente.

O racismo estrutural não permite que eu relaxe, que eu mostre minhas potencialidades e talentos. Simplesmente não deixa.

É sempre preciso gritar, se impor, dizer basta.
Cansa.
É cansativo, porque minha cor chega primeiro.

 

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** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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