Ministério da Saúde retira do ar estudo sobre saúde da população negra 

FONTEPor Rubens Valente, do UOL
O racismo institucional é um dificultador na assistência à saúde da população (Foto: Marcello Casal Jr/Arquivo/Agência Brasil)

O Ministério da Saúde retirou da página em que estava na internet, com o rol de várias outras publicações, um estudo que ouviu mais de 52 mil brasileiros sobre a saúde da população negra no Brasil. O levantamento apontava, ao fazer uma comparação com os brancos, um cenário desfavorável para os negros no consumo de frutas e hortaliças, entre outros itens, fornecendo indicadores científicos sobre a desigualdade social entre negros e brancos.

O estudo, com 132 páginas, foi feito em 2018 e estava no ar desde julho do ano passado sob o guarda-chuva da Secretaria de Vigilância em Saúde, a mesma área técnica que sofreu uma intervenção branca do governo Bolsonaro na semana passada a fim de alterar o cálculo dos mortos e casos de Covid-19 no país.

O levantamento é intitulado “Vigitel Brasil 2018 População Negra: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico”. A coluna não conseguiu identificar a data exata da retirada do estudo no site do ministério na internet, mas ela ocorreu entre abril e 8 de junho deste ano.

Na página do Vigitel do ministério, estão disponíveis os estudos realizados pelo sistema desde 2006, incluindo o “Vigitel Brasil de 2019”, com exceção do dedicado à população negra. A página é o rol das publicações do Vigitel.

A retirada do estudo do ar foi antecedida pela extinção, ainda na gestão do ministro Luiz Mandetta, de um departamento criado nos anos 90 para avaliar e cumprir a política nacional de saúde voltada para populações negra, do campo e da floresta, de gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros e travestis, ciganos, população em situação de rua e outros. Antes denominado Dagep (Departamento de Apoio à Gestão Participativa), foi transformado numa coordenadoria.

De acordo com servidores do Ministério da Saúde ouvidos pela coluna sob a condição de não terem seus nomes publicados, os dois movimentos estão imbricados. A ideia do governo seria espalhar dentro do ministério o discurso “de que não existem mais políticas identitárias, de que não há diferenças entre população negra e população branca”.

“Fica o recado de que, para o ministério, não é interessante mostrar essas comparações, já que ele quer enfraquecer as políticas voltadas para a população negra desde 2009. Se eu quero enfraquecer ou inviabilizar essas políticas, eu escondo as diferenças. Quer dizer, ‘olha, nossa população é muito homogênea, somos iguais’. Mas tem as pesquisas que indicam o contrário. Se você some com a pesquisa, não tem evidência científica para provar o contrário”, disse um servidor.

A pesquisa, que demorou meses e envolveu vários servidores do ministério, submeteu 52 mil brasileiros a um detalhado questionário sobre hábitos alimentares e de saúde. O sistema Vigitel do ministério, que ouve brasileiros pelo telefone, existe desde 2006 com o objetivo de monitorar a frequência e a distribuição dos principais determinantes das DCNTs (Doenças Crônicas Não Transmissíveis).

Em 2018 o Vigitel fez “o primeiro relatório desse inquérito telefônico com um olhar específico para a população negra”, como diz a apresentação do estudo. É o resultado desse levantamento, concluído em 2019, que desapareceu do site do ministério.

“O estudo dos indicadores do Vigitel População Negra deve ser usado por gestores, profissionais de saúde e representantes da população negra, contribuindo para a formulação, avaliação e monitoramento de políticas, programas e ações que promovam a interface necessária entre a promoção da saúde e a prevenção de doenças para a melhoria da qualidade de vida deste grupo populacional. Além disso, as análises direcionadas à população negra permitem que esta assuma um protagonismo com relação à sua saúde e à conquista de seus direitos”, diz a apresentação do estudo que saiu do ar.

Na parte sobre as comparações entre as populações negra e branca, o levantamento apontou “cenário desfavorável” para a primeira “no caso do consumo de frutas e hortaliças (29,5 vs. 39,1% para a frequência de consumo regular de frutas e hortaliças e 20,1 vs. 26,7% para aquela de consumo recomendado), do consumo abusivo de bebidas alcoólicas (19,2 vs. 16,6%) e da avaliação negativa da saúde (5,2 vs. 4,0%)”.

Por outro lado, diz o estudo, “a população negra apresentou frequências maiores do que a população branca no caso dos indicadores de prática de atividade física e sedentarismo (15,3 vs. 13,3% para a frequência de ativos no deslocamento, 42,4 vs. 46,2% para a frequência de indivíduos insuficientemente ativos e 13,0 vs. 14,7% para a frequência de indivíduos inativos) e da frequência de indivíduos conduzindo veículo após o consumo de bebida alcoólica (4,7 vs. 6,3%)”.

‘Mais uma atitude racista’

Givânia Maria da Silva, co-fundadora da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) e integrante dos coletivos de mulheres e de comunicação da entidade, disse que a exclusão do artigo e a extinção do departamento é “mais uma atitude racista do governo Bolsonaro”. “Essas políticas, esses departamentos e marcadores foram criados com base em dados do próprio Estado brasileiro. Houve o reconhecimento de que existe uma desigualdade de acesso à saúde como também da educação. Discutimos políticas de inclusão da população negra na saúde. Essa ideia de que era tudo um povo só e que Brasil era uma ‘democracia racial’ já tinha sido vencida há mais de 20 anos”, disse Givânia.

Ela faz referência à Marcha Zumbi dos Palmares, realizada em 20 de novembro de 1995 para marcar os 300 anos da morte do herói negro Zumbi dos Palmares (1655-1695), líder da resistência dos quilombos na antiga capitania de Pernambuco, hoje estado de Alagoas.

A marcha reuniu cerca de 30 mil pessoas em Brasília que denunciaram preconceito, racismo e ausência de políticas públicas voltadas para a população negra. No mesmo dia, o então presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) instituiu um Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra. O trabalho resultou na criação de políticas e departamentos e órgãos específicos para esse tema, incluindo um departamentos nos ministérios da Saúde e da Educação, da Cultura e um programa de demarcação de terras quilombolas.

“Nada disso foi criado para dar um cargo a alguém, foi criado a partir dos dados tanto dos censos do IBGE como também das PNADs, que são pesquisas mais momentâneas. Elas trouxeram para o conhecimento do governo brasileiro a disparidade que existia de acesso da população negra ao sistema de saúde. O racismo é tão enraizado na nossa sociedade que mesmo no SUS a população negra ficava à margem do acesso à saúde. Então, quando o governo toma a decisão de extinguir esses departamentos, fazer o que está fazendo na Fundação Zumbi dos Palmares, sumir com esse estudo, só está demonstrando o desprezo que tem pela população brasileira. Não tenho dúvida de que isso é o racismo operando de forma muito radical por dentro das instituições, cujo coordenador dessa operação é o presidente da República.”

‘Destruir o pouco que tem’

Biko Rodrigues, da coordenação nacional da Conaq, disse que o sumiço do estudo do site do ministério é “muito preocupante” e revela e mostra “a forma sorrateira do governo de esconder dados relevantes”.

“Em um país onde mais de 60% da população é negra, onde há poucos estudos sobre saúde da população negra, sumir com dados relevantes como esses? Nós sempre cobramos do Estado brasileiro que tivesse u departamento específico para cuidar da população negra e agora, além de não se ter aquilo que se tinha coletado de informação da população negra, esse governo de retirar, de sumir. Isso significa que ele, de uma forma deliberada, racista, totalmente maldosa, ele já escolheu quem é que vai morrer então. Isso é um caso grave e mostra que é um desgoverno. Além de não construir, quer destruir o pouco que tem.”

Segundo Rodrigues, o Dagep do Ministério da Saúde “era o único espaço dentro do governo que discutia uma ação estratégia para saúde no Brasil visando a vulnerabilidade da diversidade étnica”.

Na pandemia do novo coronavírus também não existe um levantamento específico e atualizado do ministério sobre a população quilombola atingida pela doença. O levantamento é feito pelo próprio movimento negro, a partir de informações coletadas em todo o país. Nesta terça-feira (9), o trabalho já indicava 64 quilombolas mortos e 388 casos confirmados de Covid-19, além de 188 suspeitas em monitoramento.

A coluna procurou o Ministério da Saúde na manhã desta quarta-feira (10). O ministério informou, às 8h30, que estava providenciando a resposta junto ao setor técnico. Às 16h30, o ministério encaminhou uma nota de um parágrafo e um link que leva ao estudo sobre a população negra em uma biblioteca virtual, mas não à página da Secretaria de Vigilância em Saúde, onde o estudo sobre a população negra foi originalmente colocado e depois desapareceu. A íntegra da nota é a seguinte: “O Ministério da Saúde informa que a publicação está disponível no site e pode ser acessada através deste link: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/vigitel_brasil_2018_populacao_negra.pdf ”

A coluna indagou por que o estudo continua fora da página do sistema Vigitel, onde estão todos os outros estudos do gênero realizados pelo sistema e o motivo pelo qual o estudo foi retirado do ar, mas ainda não houve resposta. Também ficou sem resposta a indagação sobre a extinção do departamento Dagep.

 

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