Muitos têm sido os desdobramentos da guerra em Gaza, cujos efeitos se estendem para além da catastrófica situação da população palestina. Os EUA têm sido especialmente tensionados pela polarização presente, o que vem alcançando a universidade. Recentemente, tal tensão redundou na renúncia da presidenta de Harvard, Claudine Gay, acusada de antissemitismo e plágio.
Tal fato vem sendo noticiado por uma parte da mídia brasileira, em que as manchetes se concentram nas acusações à agora ex-presidenta, segunda mulher e a primeira negra a assumir tal posto —o que não se mostra secundário neste processo, muito pelo contrário.
Buscando ampliar o debate, trazemos alguns fatos para conhecimento do leitor e da leitora brasileiros, apresentando informações presentes na mídia internacional. Esta vem denunciando o caráter racista e misógino da campanha contra a presidenta, em que através da sua difamação buscam atacar a livre expressão e as políticas de diversidade, equidade e inclusão (DEI) nas universidades americanas:
1 – Em audiência no Congresso para discutir o antissemitismo nos campi norte-americanos, três presidentas das mais prestigiosas universidades americanas —Harvard, MIT e Pensilvânia (todas mulheres)— foram duramente inquiridas por congressistas republicanos, ávidos por arrancarem alguma expressão que pudesse ser apreendida como sinal de antissemitismo. Destacou-se a congressista Elise Stefanik, que acusou as presidentas das universidades de terem sido reticentes na resposta à questão sobre os limites da liberdade de expressão diante de manifestações consideradas antissemitas. Stefanik exigiu a renúncia das três presidentas, o que redundou na imediata queda da dirigente da Universidade da Pensilvânia, seguindo-se intensa campanha pela renúncia da presidenta de Harvard. Formada em Harvard, Stefanik foi afastada do Comitê de Assessores do Institute of Politics da instituição por apoio às afirmações de fraude nas eleições de 2020. Ligada ao movimento supremacista branco, integra o grupo de republicanos que luta pelo desmonte das políticas acadêmicas de inclusão;
2 – A segunda acusação que provocou a renúncia da presidenta de Harvard foi a de plágio em sua produção acadêmica. Esta não teve origem no espaço universitário, mas em dossiê anônimo publicado pelo jornal conservador New York Post. Através de intensa varredura nos artigos por ela publicados, denunciou-se a ausência de referências a alguns autores, o que configuraria plágio. Diante da denúncia, a Universidade Harvard abriu uma sindicância que concluiu que houve descuido no uso de referências completas a autores citados, sem que isso caracterizasse plágio. Vários desses autores, como David Canon e Stephen Voss afirmam haver apenas omissão de seus nomes em trechos triviais e retóricos, negando o plágio, o que os moveria a defendê-la;
3 – Outra figura central na campanha difamatória é Bill Ackman, dono de fundos de investimento, opositor das políticas acadêmicas inclusivas e doador de Harvard. Como denunciado pela imprensa, foi rechaçado em sua pretensão de intervir na gestão acadêmica da instituição, por ser doador, estando movido por ressentimentos e pelo combate às políticas de inclusão;
4 – Destaca-se o papel desempenhado pelas mídias conservadoras e pelas redes sociais, que vêm reproduzindo essa campanha difamatória, com uso de expressões racistas e ameaças contra a integridade física de Claudine Gay, denunciado em sua carta de renúncia.
Compreender o que está em jogo é fundamental para entender os riscos presentes.
A vitória da campanha difamatória e a sua dimensão racista e misógina, movidas por interesses espúrios, fragiliza as políticas acadêmicas de inclusão e diversidade, submete a gestão acadêmica aos interesses econômicos e põe em risco a vida de pesquisadores e pesquisadoras, em especial mulheres e negros, cuja presença nesses espaços, ainda muito incipiente, ameaça os conservadores supremacistas.
Nilma Lino Gomes
Professora titular da FaE (Faculdade de Educação)-UFMG e emérita da UFMG; ex-ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (2015) e do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (2015-16, governo Dilma)
Maria Cristina Soares Gouveia
Professora titular da FaE-UFMG