Misoginia em nível máximo

FONTEPor Flávia Oliveira, do O Globo
Flávia Oliveira (Foto: João Cotta)

O ódio às mulheres no Brasil alcançou nível tão intenso quanto despudorado. A violência de gênero circula escancarada, sem vergonha ou sutileza. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em pesquisa com o Datafolha, apurou que um terço das mulheres com 16 anos ou mais do país — 21,5 milhões, ao todo — já sofreu violência física ou sexual por parceiro íntimo ou ex. Ao longo de 2022, a Rede de Observatórios de Segurança monitorou ocorrências em sete estados (Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Ceará, Pernambuco, Maranhão e Piauí). Os pesquisadores identificaram 2.423 episódios criminosos, dos quais 495 feminicídios. A cada quatro horas, uma brasileira — mãe, irmã, filha, neta — foi vítima da brutalidade no país.

São estatísticas que, infelizmente, não inibem novas agressões. Num intervalo de 12 horas entre a noite de quarta-feira e a manhã de ontem, o país testemunhou dois episódios emblemáticos de misoginia. Após vitória nos pênaltis, que levou o Corinthians às oitavas de final da Copa do Brasil, jogadores com a camisa que Sócrates honrou partiram para um abraço de desagravo ao técnico condenado por estuprar uma menina de 13 anos num país estrangeiro nos anos 1980. Desligado horas depois da função, o treinador tem por apelido o nome do bicho-papão que assombra criancinhas.

Ano sim, ano também, o futebol brasileiro é confrontado com acusações de violência sexual contra ídolos que, por fama e fortuna, se creem acima da lei. Neste momento, temos Robinho (condenado na Itália, a ponto de cumprir pena no Brasil) e Daniel Alves (preso na Espanha, ainda sem julgamento). O apoio a Cuca — dos jogadores do Timão em campo, dos cartolas na contratação, de parte da torcida — foi ato de agressão às 822 mil brasileiras vítimas de estupro por ano. São dois casos por minuto, na estimativa do economista Daniel Cerqueira para o Ipea. A impunidade e a tolerância social à violência sexual contra meninas, jovens e mulheres fazem com que somente 8,5% das ocorrências sejam registradas em delegacias de polícia, e 4,2% cheguem ao sistema de saúde.

A pesquisa do FBSP informa que, por dia, 50.962 mulheres sofreram algum tipo de violência no ano passado. Foi quase um Itaquerão lotado. Assédio, abuso, importunação sexual, violência doméstica, estupro, lesão corporal, tentativa de homicídio, feminicídio integram o rol de crimes de gênero tipificados no Código Penal. Idolatria a estupradores, não. Tampouco a agressão gratuita perpetrada por Eduardo Girão contra o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, a três meses do nascimento da primeira filha — sim, uma menina —com sua companheira, Ednéia Carvalho.

O senador da República pelo Partido Novo-CE, em plena sessão na Casa erguida para abrigar debates políticos de alto nível, ofereceu ao jurista e professor um objeto em forma de feto, num ativismo caricato e deplorável contra o aborto. Agiu sem respeito, sem razão, sem decoro. Desonrou o Senado, ofendeu o ministro e sua esposa, vilanizou brasileiras que têm, por lei, o direito de interromper a gestação e aquelas que militam pela descriminalização plena. Desde 1940, é permitido o aborto em caso de risco de vida à gestante ou estupro; desde 2012, por decisão do STF, de fetos anencéfalos.

Nunca foi fácil ser mulher no Brasil. Anda insuportável. Quando há percepção de avanço, a violência explode ferindo corpos e almas. A cidade, a política, as empresas são ambientes hostis. Há agressões objetivas materializadas em crimes e na desigualdade histórica, que dificulta o acesso ou invisibiliza as que chegam aos espaços de poder, em particular, se negras e indígenas e lésbicas e trans. Há a brutalidade de atos como os protagonizados pelos jogadores do Corinthians e pelo senador.

E há a violência nem sequer mencionada, porque o Brasil interdita o debate sob dimensões de gênero e raça. Quem acompanha não imagina que diz respeito, sobretudo, às mulheres o enfrentamento aos ataques e ameaças às escolas. São elas as mães responsáveis pedagógicas por suas crianças; são elas a maioria das professoras da educação básica. É sobre mulheres a política de segurança pública. São vítimas predominantes dos crimes sexuais, mas também são mães e mulheres dos jovens negros assassinados aos milhares em favelas e periferias Brasil afora. São delas as meninas e os meninos que perdem aula e consultas médicas em decorrência das operações policiais banalizadas no Estado do Rio. São elas que formam a massa mais numerosa de trabalhadores desempregados, informalizados, mal remunerados, endividados, responsáveis por famílias em situação de fome. Situações que precisam mudar.

-+=
Sair da versão mobile