Ao longo de nossas vivências, somos habituadas a acreditar que a sociedade brasileira se constituiu pela mistura harmoniosa de raças, que nossos antepassados – europeus, indígenas, africanos – conformaram uma mistura, étnica e cultural, que deu origem ao mestiço ou, ainda, à identidade brasileira.
por Bianca Gonçalves no Mina Explosiva
Dessa forma, minando o reconhecimento das diferenças, fundou-se o mito da democracia racial. Estratégica, essa perspectiva naturaliza e sustenta os discursos racistas que permeiam a construção de nossas identidades e, por conseguinte, embranquece, tal como manda a hegemonia, grande parte das heranças e discursividades de povos historicamente oprimidos.
Em Rediscutindo a mestiçagem, Kabengele Munanga mostra que o discurso positivado da identidade mestiça (isto é, a mestiçagem enquanto elemento que “eleva” uma nação, e não o contrário, conforme ocorreu nos EUA durante a segregação racial) se deu através de um longo caminho até chegar ao auge com o racista Gilberto Freyre, que deu forma teórica a esse mito.
Freyre encontrará na “mulata” do Brasil colonial o sujeitopor excelência do mito da democracia racial: ao mesmo tempo em que evoca uma alteridade menos alheia, síntese do “eu” e o “outro”, ela também corresponderá à condição sexualizada da escravizada, disponível ao senhor branco de engenho, que contribui para o confinamento doméstico da mulher branca, produzindo, dessa forma, o estereótipo da mulher negra ultrassexualizada, demasiadamente sensual.
Como sabemos, a ideologia da mestiçagem, assim como todas as ideologias, cai em contradições, uma vez que não dá conta de explicar a manutenção do racismo. Tal aspecto desse dado se faz, justamente, para tentar ocultar a opressão de raça e conduzir a algumas ideias racistas muito particulares. Uma das práticas perpetuadas pelo racismo brasileiro foi a de eleger certas características como “puramente negras” e outras tantas como “puramente brancas”. É dessa forma, por exemplo, que a hegemonia branca afirma coisas como: “Você é negro de traços finos”, “ele é muito claro para ser negro”, “ela tem traços grossos mas não chega a ser negra”, etc.
Chegamos, portanto, à discussão acerca do colorismo, que se caracteriza pela hierarquização de tons de pele, fator determinante para o grau de discriminação que uma pessoa negra pode sofrer. Como afirma Neusa Santos em Tornar-se negro, é através desse continuumde cor – em que branco e negro se localizam em cada um dos extremos dessa linha ininterrupta – que se adscrevem “significados diversos, segundo o critério de que quanto maior a brancura, maior as possibilidades de êxito e aceitação”.
O mito da democracia racial então ganha o colorismo como aliado, fazendo-se enquanto agente da branquitude. Junto a isso temos as classificações intermediárias, engodos racistas que promovem um embraquecimento daqueles que são condicionados a se declarar “pardos”, “mestiços”, “morenos”.
Aqui irei me dedicar à classificação “moreno” ou melhor, “morena”, já que compreendo que a leitura de raça interseccionalizada com a leitura de gênero nos fornece dados mais certeiros para que possamos passar pelo processo de autoreconhecimento de uma opressão que nos atinge. Interessa-me focar nessa classificação porque ela foi, durante muito tempo, um espectro que rondava a afirmação da minha negritude, e que, por muitas vezes, me angustiava por não saber ao certo que espaços a hegemonia branca me concedia.
“Morena” é uma definição ambígua: ao mesmo tempo em que é empregado a pessoas brancas de cabelo escuro (a Xuxa não ficou “morena”?), também é geralmente utilizado para classificar mulheres negras de tom de pele mais claro. Tal ambiguidade não se faz à toa: trata-se de mais um gesto de embraquecimento promovido pela ideologia racista da mestiçagem, concebendo um falso elo entre a negritude e a branquitude.
Quase sempre marcado por um esforço sensualizador, mulheres tidas como “morenas” são também atingidas pela marca do “exóticas”, assim como a hegemonia branca costuma classificar aquelas que fogem dos padrões eurocêntricos de beleza (e também cabe aqui refletir o que significa ter uma “beleza exótica” num país cuja metade da população é negra). Uma busca rápida no Google nos mostra que “morena” e, ainda, acrescido do terrível “exótica”, é uma expressão muito cara à pornografia e à hipersexualização de corpos de mulheres negras.
Ainda, tendo consciência das peculiaridades do colorismo no Brasil, no qual negras e negros menos pigmentados são tolerados nos espaços da branquitude – mas jamais aceitos, já que, para tanto, seria necessário reconhecer a existência do racismo – podemos analisar de que modo a hegemonia branca descreve e tolera a presença dessas mulheres.
Quando a autora Glória Perez decidiu eleger como protagonista da novela Salve Jorge a atriz Nanda Costa, uma mulher“com a cara da favela” – que tem uma história de amor com um policial, enredo muito propício para o momento global propagandístico da atuação das UPPs no RJ – afirma ter lidado com preconceitos justamente por ela não se encaixar nos padrões de “mocinha” de novela. Lembremos que Nanda Costa, que outrora atuou no filme Sonhos Roubados (tematiza a história de três meninas numa favela) é considerada pela mídia como “morena exótica”. Não por acaso o nome de sua protagonista era: Morena.
Quando a autora Glória Perez decidiu eleger como protagonista da novela Salve Jorge a atriz Nanda Costa, uma mulher “com a cara da favela” – que tem uma história de amor com um policial, enredo muito propício para o momento global propagandístico da atuação das UPPs no RJ – afirma ter lidado com preconceitos justamente por ela não se encaixar nos padrões de “mocinha” de novela. Lembremos que Nanda Costa, que outrora atuou no filme Sonhos Roubados (tematiza a história de três meninas numa favela) é considerada pela mídia como “morena exótica”. Não por acaso o nome de sua protagonista era: Morena.
É inegável o fato de que mulheres negras rotuladas como “morenas” ou “pardas” carregam privilégios em relação à mulheres negras mais pigmentadas, no entanto é preciso reconhecer que esses espaços são limitados, interditados pela branquitude, que não medirá esforços em confiná-las ao espaço dos arquétipos, muitas vezes ultrassexualizados e embranquecedores.
Ao contrário do que afirma a hegemonia branca, os tons de negra são mil. Negras e negros constituem um grupo heterogêneo. Basta olhar, por exemplo, para as diversas etnias africanas e observar que elas são plurais: a diversidade fenotípica é uma marca do povo negro. E também de nós, filhas da diáspora negra. Que nenhum gesto nos embranqueça!