Mostra no Musée d’Orsay repensa a representação visual dos negros na pintura ocidental

Femme aux Pivoines (1870), de Frédéric Bazille (Foto: Divulgação)

Exposição, que fica em cartaz até dia 21.07, repensa a narrativa da arte e contextualiza o aspecto racial no cotidiano de Paris

Por ISABEL JUNQUEIRA, da Vogue 

 

Femme aux Pivoines (1870), de Frédéric Bazille (Foto: Frédéric Bazille)

Os discursos em torno de Olympia, obra-prima precursora da arte modernista pintada por Édouard Manet em 1863, sempre giraram em torno da cortesã nua, esparramada no divã, cobrindo firmemente o sexo e desafiando o espectador como olhar, enquanto, no fundo, uma empregada traz um buquê de flores (provavelmente de um cliente). A força da prostituta feriu tanto a moral e os bons costumes da sociedade hipócrita da época que o quadro quase foi vandalizado e acabou saindo de circulação. Se estudos deram, aos poucos, contornos feministas à prostituta branca, pouco se falou sobre a doméstica negra que ocupa, no entanto, um lugar importante na composição do pintor francês.

Frustrada pelo (não) tratamento das figuras negras nesta e em outras narrativas da história da arte, Denise Murell resolveu deixar a carreira de empresária para preencher essa lacuna perpetuada em livros, salas de aula e museus. A tese de doutorado da norte-americana na Columbia University em Nova York não só identificou a criada de Olympia — segundo a estudiosa, a modelo se chama Laure — como contextualizou o aspecto racial no cotidiano da Paris moderna. A pesquisa também deu vida a Jovens Africanas, Cabeça de Negros, Retratos de Mulatas, entre outros títulos genéricos de obras agora reunidas em Le Modèle Noir: de Géricault à Matisse, exposição instigante e necessária que acaba de abrir no Musée d’Orsay.

Étude d’Homme après le Modèle Joseph (1818-19), de Géricault

“Diferentemente dos Estados Unidos, os black studies são algo muito recente na França. Como o assunto também é novo nos museus daqui, achamos melhor cobrir um período maior, a partir do fim do século 18”, explica Cécile Debray, cocuradora da mostra, que se concentrou na cena artística parisiense. Emboa parte dos casos, o olhar do artista sobre esses modelos se confunde com a história do colonialismo e da escravidão, abolida na França definitivamente em 1848. Uma das obras mais icônicas da coleção do Louvre e um dos destaques no clipe Apeshit, de Beyoncé e Jay-Z, Retrato de uma Jovem Negra, é um bom exemplo.

Rebatizada recentemente de Retrato de Madeleine, graças ao trabalho da historiadora de arte francesa Anne Fontaine, a tela, realizada em 1800 e que integra a exposição, revela, nas palavras da pesquisadora, “o espaço utópico criado pela primeira abolição da escravatura”. A imagem dá um tratamento elegante, sóbrio e inédito à mulher negra, seguindo os mesmos cânones usados para retratar damas da aristocracia, se não fosse por um detalhe fundamental: Marie-Guillemine Benoist, autora do quadro e patroa de Madeleine, deixa um dos seios da empregada à mostra, algo inimaginável nos retratos de mulheres brancas nobres da época.

A mostra revela o longo caminho até essas figuras ganharem identidade própria, de Retrato de uma Mulher com Turbante Azul (1827), de Delacroix, que adicionava objetos e figurinos para aumentar o exotismo da imagem, passando pelos estudos do pintor romântico Géricault ou ainda por Matisse, que deixa para trás o estereótipo orientalista de negras a partir da década de 30, quando realiza diversas viagens a Nova York e descobre o trabalho dos artistas do Harlem, que retratavam negros como são: indivíduos autônomos.

Museé d’Orsay: 1 Rue de la Légion d’Honneur, Paris. Até 21 de julho

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