Movimentos negros, educação patrimonial e o direito à cidade

FONTEPor Maria Cláudia Cardoso Ferreira, enviado para o Portal Geledés

O ano de 2020 foi marcado por protestos espalhados em todo o mundo após a morte, no dia 25 de maio de 2020, do afro-americano George Floyd por um policial branco nos EUA. No Brasil, apesar da pandemia do novo coronavírus, houve respostas indignadas pelo acontecido com manifestações organizadas, em sua maioria, pelos movimentos sociais negros. Meses depois, em 19 de novembro, às vésperas do simbólico Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, o prestador de serviços negro João Alberto Freitas foi assassinado por seguranças brancos de um supermercado na Grande Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Novamente, o pertencimento racial desse homem, combinado com outros marcadores sociais, determinou a sua morte.

Em 2004, o caso do dentista Flávio Ferreira Sant’Anna, de 28 anos, me deixou indignada. Guardei a reportagem durante muito tempo. Flávio era negro, retornava do aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, dirigindo o seu carro e vestia uma camiseta preta. A combinação desses elementos, sendo a raça o mais determinante, foi o suficiente para que ele fosse confundido com um assaltante, julgado e assassinado pela polícia na mesma noite. Todos esses casos ocorreram em grandes cidades e, infelizmente, poderíamos enumerar milhares de outros. Ao nos debruçarmos sobre esses acontecimentos constatamos que viver nas cidades pode ser muito difícil para as pessoas negras.  

Segundo o Censo do IBGE, 84,4% da população brasileira vivia em áreas urbanas e 15,6%, em regiões rurais em 2010. Apesar do IBGE estudar uma nova metodologia que poderá diminuir a diferença entre população urbana e rural em pelo menos 12 dígitos, o fato é que continuaremos vivendo majoritariamente nas cidades, ou melhor nas grandes e médias cidades, uma característica da nossa urbanização.  

O território brasileiro e a sua população vêm sofrendo transformações políticas, econômicas e socioculturais advindas da urbanização desde o século XIX. No entanto, foi a partir dos anos 1950 que a maioria das cidades cresceu significativamente, caracterizando esses últimos 70 anos como o boom da urbanização. No cômputo geral da população brasileira, saltamos de 70 para 213 milhões de pessoas e, se antes de 1960, cerca de 44% habitavam as cidades, atualmente dobramos esse percentual.  

Em 2019, 56,2% da população brasileira se declarou preta ou parda; já o número de autodeclarados brancos encolheu em 3%. Contudo, a população preta e parda foi pouco considerada nos projetos de urbanização e modernização implantados nas cidades brasileiras. Pelo contrário, estudos consolidados atestam, inclusive, que políticas segregacionistas, higienistas e elitistas foram projetadas e colocadas em prática desde, pelo menos, o final do século XIX. Consequência dessas políticas é o tratamento dispensado até hoje aos pretos e pardos, seja como grupo, seja como indivíduos. 

Trouxe os casos acima e os dados sobre urbanização e população negra para pensarmos o tema do direito à cidade a partir da perspectiva das pessoas negras, ou melhor, para refletirmos sobre como o racismo interferiu e interfere no nosso direito à cidade e como os movimentos negros organizados pautaram esse tema.  

Por conta do sistema escravista, pessoas negras estavam em quase todos os espaços das cidades durante o século XIX. Contudo, no pós-abolição o projeto de modernização não via com bons olhos pessoas negras nas cidades, a não ser para desempenhar trabalhos menos qualificados. Teresinha Bernardo, ao analisar a memória coletiva de idosos brancos e negros em São Paulo, constatou que as lembranças dessas pessoas foram moldadas pela inserção social que tiveram. Na memória dos velhos negros e negras aflorava uma cidade sombria, desconhecida e hostil. Já para os velhos brancos, São Paulo representava o progresso e o trabalho. 

Em São Paulo, a população negra tinha o seu acesso a eventos, clubes, lojas, parques, jardins e até mesmo a certas ruas restringido. Sobre essa situação, em geral a postura dos negros paulistanos era de não contestação as formas de segregação espaço-racial. Assim, uma resposta ao que Petrônio Domingues chamou de racismo segregacionista e costumeiro foi criar os próprios grupos e espaços de sociabilidade ou escolher lugares de encontro e de circulação que não fossem sistematicamente frequentados pelos brancos. Assim, locais como a Praça João Mendes, o largo do Palácio, o largo do Paissandu, onde se encontra a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, bem como as imediações da Praça da Sé, sobretudo aos finais de semana, eram respeitados como “territórios negros”.

Entretanto, a partir dos anos 1930, os intelectuais-militantes de algumas organizações negras vislumbravam outros modos de viver na cidade. Além de investir na sociabilidade negra, as lideranças almejaram a integração político-social demandando do Estado ações de cidadania. Assim, as coletividades negras tomaram como repertório a ação de denunciar o preconceito e a discriminação contra o negro, questionar os espaços segregados e reivindicar os mesmos direitos que brancos – muitos dos quais estrangeiros – tinham de usufruir da cidade. 

Em São Paulo, a Rua Direita era vista como o lugar de sociabilidade dos estudantes de Direito e das famílias mais tradicionais. Já os negros iam para o Largo do Arouche. Mas um episódio de discriminação racial contra uma grávida acusada de “invadir” o “território branco” fez com que militantes da Frente Negra Brasileira, empunhado a bandeira nacional e a da própria entidade, ocupassem a Rua Direita como forma de protesto. Daquele episódio em diante, mesmo com a reclamação de muitos lojistas ao chefe de polícia, a rua passou a ser frequentada por negros principalmente nos domingos à noite. Outra peleja foi nos rinques de patinação. Os frentenegrinos fizeram tantas denúncias que o chefe de polícia foi obrigado emitir uma nota determinando que o local que não aceitasse usuários negros seria fechado, o que aconteceu em alguns casos. A Frente Negra Brasileira recebia denúncias de racismo segregacionista em outros municípios. E, para espanto das pessoas, “os frentenegrinos chegavam nas cidades e iam entrando nos jardins”, como relatou Francisco Lucrécio em depoimento a Marcio Barbosa, em 1998. 

Aniversário de fundação da Frente Negra Brasileira: uma parte da assistência, 16/09/1935. Sem autoria, Coleção Arthur Ramos. Fonte: https://www.bn.gov.br/explore/colecoes/arquivo-arthur-ramos

Em 1927, no texto “Os pretos e o jardim público”, estampado no jornal O Clarim d’Alvorada, há uma situação ambígua. O articulista denuncia o fato dos rapazes e moças negros serem impedidos de passear no Jardim da Luz, lhes restando apenas os arredores, mas ao mesmo destaca a falta de modos de alguns rapazes, incluindo os “patrícios de cor”, que importunavam as moças com “apoupos e chalaças”. Em outras situações as mulheres negras sofriam chacotas e vaias porque vestiam chapéus. Visto como um distintivo da modernidade, o ambiente racista não conseguia associar chapéu à mulher negra. No ano seguinte, o jornal estampou outro caso de discriminação racial. O orfanato Armando de Barros, por determinação do bispo diocesano de Botucatu, não mais aceitaria órfãos negros. Os colégios também entraram na mira dos ativistas, pois muitos deles não matriculavam alunos negros ou só admitiam a matrícula em casos muito raros, em que a criança fosse apadrinhada por um figurão muito proeminente. 

Militantes na Avenida São João, São Paulo, durante a década de 1940. Da esquerda para direita: (?), José Correia Leite, Alaíde, (?), Abdias do Nascimento, Sebastião Rodrigues Alves, Fernando Góis e José Pellegrini.. Sem autoria. Imagem disponível em SILVA, Luiz (CUTI). … E disse o velho militante José Correia Leite. 2ª. ed. São Paulo: Noovha América, 2007, p.146.

Por fim, gostaria de salientar que mobilizações em torno da construção de monumentos ligados à história e memória coletiva negras também foram organizadas pelos coletivos negros do passado. A campanha em torno do monumento à Mãe Preta (que não logrou êxito nos anos 1930) e a mobilização para a construção do busto em homenagem ao centenário de Luiz Gama (inaugurado em 1931), abordados no texto de João Paulo Lopes, são exemplos emblemáticos. 

Romaria aos túmulos dos abolicionistas Luiz Gama e Antônio Bento no Cemitério da Consolação, em São Paulo, no dia 13 de maio de 1931. Imagem disponível em SILVA, Luiz (CUTI). … E disse o velho militante José Correia Leite. 2ª. ed. São Paulo: Noovha América, 2007, p. 60

O patrimônio cultural tem o papel de oportunizar um sentimento de pertencimento e de identidade; ele é dinâmico e evolui de acordo com a criatividade dos grupos sociais ao qual se vincula. Dessa perspectiva, é possível afirmar que as cidades brasileiras proporcionam esse sentimento às pessoas negras? O que podemos fazer, como historiadores/as, para minimizar essa realidade? 

Debates em torno da validade das estátuas e monumentos controversos têm sido um caminho desde a morte de George Floyd. Contudo, podemos fazer mais. Especialmente, no âmbito do ensino-aprendizagem de história em diálogo com a educação patrimonial. Uma aula que aborde como os grupos negros politicamente organizados reagiram ao racismo e à segregação espacial durante a urbanização implica sair da escola para observar, com atenção, o espaço urbano construído, o patrimônio edificado, os lugares e os não-lugares de memória do ponto de vista das pessoas negras. Maria de Lourdes Horta propõe que os/as estudantes, sob supervisão didática do/a professor/a, observem, registrem, explorem e se apropriem do espaço, monumento, manifestação cultural, em análise. Para isso vale escrever, fotografar, conversar sobre o tema, empreender pesquisas, produzir textos, fazer releituras, exposições, bem como questionar aos gestores e à sociedade civil sobre o assunto. Assim, os/as estudantes aprendem a exercitar o seu direito à cidade, compreendendo que o espaço público não é algo estático, pois tanto o patrimônio quanto os lugares podem ganhar outros significados ao longo do tempo sócio-histórico. 

Algumas universidades e instituições da sociedade civil já têm desenvolvido ações educativas no âmbito do patrimônio. Destaco aqui os projetos Santa Afro-Catarina, da Universidade Federal de Santa Catarina e Passados-Presentes, da Universidade Federal Fluminense, que apesar de dar maior destaque aos lugares de memória da escravidão, tem um roteiro voltado para a região da Pequena África, situada no centro da cidade do Rio de Janeiro. Outra iniciativa é o site do projeto Salvador Escravista, que possibilita problematizar, em sala de aula, o modo como a cidade de Salvador conta a história das pessoas negras e das pessoas brancas, tanto a partir da localização dos bairros e da distribuição dos equipamentos públicos, como da escolha dos homenageados e a sua distribuição na cidade. 

Roteiro da “Pequena África”. Fonte: http://passadospresentes.com.br/site/Site/index.php.

Os roteiros histórico-culturais com foco nas histórias negras promovidos pelo Guia Negro e pelo Coletivo Crônicas Suburbanas, em São Paulo e o circuito herança africana realizado pelo Instituto Pretos Novos, no Rio de Janeiro, também são oportunidades de conhecermos as cidades a partir da perspectiva negra. A professora Mônica Lima e Souza elaborou uma sequência didática específica sobre a Pequena África que vale a pena desenvolver com estudantes da educação básica.   

Nesse texto trouxe como exemplo o caso da cidade de São Paulo, para que possamos refletir o lugar das pessoas negras nas cidades brasileiras ao longo do processo de urbanização e modernização. Vimos que além de denunciar o racismo, os movimentos sociais negros empreenderam ações para mostrar que a cidade era um direito delas. Experiências análogas certamente ocorreram em outras cidades brasileiras, especialmente nos momentos em que o tema do racismo esteve na opinião pública e suscitou ações coletivas das lideranças negras. Esses conteúdos podem e devem comparecer nas aulas de história, pois ensinam sobre cidadania e sobre como os movimentos sociais negros organizados foram e são importantes para rever a dita história oficial e colocar outras narrativas no lugar. 

Assista ao vídeo da historiadora Maria Cláudia Cardoso Ferreira no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

Ensino Fundamental: EF09HI03 (Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); EF09HI05 (Identificar os processos de urbanização e modernização da sociedade brasileira e avaliar suas contradições e impactos na região em que vive). 

Ensino Médio: EM13CHS104 (Analisar objetos da cultura material e imaterial como suporte de conhecimentos, valores, crenças e práticas que singularizam diferentes sociedades inseridas no tempo e no espaço); EM13CHS204 (Comparar e avaliar os processos de ocupação do espaço e a formação de territórios, territorialidades e fronteiras, identificando o papel de diferentes agentes (como grupos sociais e culturais, impérios, Estados Nacionais e organismos internacionais) e considerando os conflitos populacionais (internos e externos), a diversidade étnico-cultural e as características socioeconômicas, políticas e tecnológicas).


Maria Cláudia Cardoso Ferreira  

Doutora em História, Política e Bens Culturais pela Fundação Getulio Vargas. Professora do Magistério Superior na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – UNILAB. E-mail: mariacardoso28@unilab.edu.br 

Instagram: @mariaclaudia_hist

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

-+=
Sair da versão mobile