Mugunzá: Cinema com Axé e Feitiço

FONTEPor Viviane Pistache, enviado ao Portal Geledés
Foto: Divulgação

Ainda em tempo: A 26.a Mostra de Cinema de Tiradentes começou na sexta-feira dia 20 de janeiro e vai até o dia 28. Como é do feitio do festival, a abertura homenageia figuras realizadoras, celebrando a vida e obra de quem sedimenta a história do nosso cinema. 

Nesta edição a dupla reverenciada é a diretora negra e lésbica Glenda Nicácio e seu parceiro Ary Rosa, também gay. Essa descrição não é trivial. A dupla provoca e subverte uma tradição de co-direções bromances, que apesar de fundamentais para a história do cinema, costumam reproduzir filmes feitos por homens e para deleite dos homens, como indica a crítica Laura Mulvey, sobre a tela ser espaço de gozo e fruição masculina. Glenda e Ary fazem cinema de muitos hífens e sem fronteiras. A interiorização de universidades públicas no Brasil na era PT levou a dupla de Minas ao Recôncavo Baiano, reconectando territórios e tradições de oralituras imagéticas. A direção é mineira, mas o elenco sempre é baiano, combinando texturas e temperos às obras de modo singular, ou como disse a protagonista de Mungunzá, Arlete Dias,  na sessão de abertura: Este é um cinema que  traz dendê ao pão de queijo e queijo ao acarajé

Profícua é uma boa definição do fôlego de trabalho da dupla. Estrearam a direção de longas com o seminal Café com Canela, que venceu a histórica edição do Festival de Brasília de 2017. No ano seguinte pariram Ilha, obra que lateja o casamento entre cinema e educação, tema nevrálgico na história de atuação da produtora Rosza Filmes, na sua missão de cinema-mutirão de formação e co-labore com a população do Recôncavo. Até o Fim, de 2020, inicia uma trilogia de interfaces entre cinema e teatro musical, que ressalta tanto a força do roteirista Ary Rosa quanto a direção de arte de Glenda que faz dos cenários personagens, rememorando a verve carpinteira do cinema como ofício. Nessa esteira vieram Voltei (2021),  e por fim Mungunzá (2022). Filmes feitos na raça, na pandemia e orçamento escasso, trazem a força do diálogo, do cenário e da atuação do elenco, numa trança de elementos incrivelmente bem ornados. 

Mungunzá é visceral quando demaquila uma mulher que sofre da vida, mãe que tenta proteger o filho de sua decadência e amante que busca vingança, e Mungunzá pode ser feitiço e veneno. Uma obra coerente, afeita ao fortalecimento do coletivo, à poética do experimentar e do compromisso pedagógico. E o encontro de Arlete Dias e Fabrício Boliveira é certamente um deleite para a audiência negra, a tradução mais que perfeita da conjunção entre o peri-gozo e o necessário. 


Viviane Pistache é preta das Minas Gerais, pesquisadora, roteirista e, de vez em quando, crítica de cinema. 

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