A escolha de um dos maiores ativistas negros da história do Brasil, Abdias do Nascimento, para ser tema do enredo da Mocidade Unida da Mooca (MuM) está ajudando a transformar o papel da escola de samba no Brasil. O samba-enredo A Ópera Negra de Abdias Nascimento faz ecoar a voz de um dos maiores ativistas dos direitos humanos no país, ressaltando seu importantíssimo legado como poeta, escritor, dramaturgo e defensor das populações afrodescendentes.
A coluna Geledés no debate entrevistou o carnavalesco carioca André Rodrigues, criador do samba-enredo, que destacou a relevância de se falar sobre Abdias Nascimento no atual momento do país.
Geledés – Como se tornou um carnavalesco e qual a sua relação com as causas do movimento negro?
Sou filho de empregada doméstica e desde os 15 anos de idade trabalho com escolas de sambas do Rio, prestando assistência na Grande Rio, na Vila Isabel, na Mocidade Independente, na União da Ilha, na Império Serrano. Em São Paulo, trabalhei com a Mocidade Alegre, com a Vai-Vai, a Águia de Ouro, e este é o meu terceiro ano na Mocidade Unido da Mooca (MuM), com enredos que escrevi sobre a cultura negra, ligados à questão da ancestralidade e de nossas raízes.
Em 2018, quando a escola estava um grupo abaixo, fiz o enredo A Santissíma Trindade de Oyó, que fala sobre o combate à intolerância religiosa, mostrando a ligação dos três santos católicos com os orixás. Em 2019, no samba-enredo Monte sagrado, a história que o tempo bordou, contei a história que me foi com contata por um baluarte da Vai-Vai, Fernando Penteado, e que lhe foi contada por outro baluarte, o Mestre Gabi, da Camisa Verde, sobre a origem dos pavilhões nas escolas de samba. Essas histórias vêm desde as tramas dos tecidos africanos, com suas identidades geométricas, iconográficas, que aportaram no Brasil com os escravos.
“O samba que hoje a escola da Mooca faz defende a maior parte da população brasileira, a negra, a favelada, que é o que o Abdias fez. E isso não é uma questão de querer privilégios, mas sim de igualdades.”
Fernando Penteado e Mestre Gabi se reencontram nas festas de Jesus de Pirapora, nos galpões. É uma história linda que transformei em música, com a valorização da memória oral do carnaval de São Paulo. Não existem registros em fotos ou audiovisual e esses dois são os embaixadores do Carnaval. Aqui em São Paulo, os quilombos das escolas de samba são mais fortes do que no Rio de Janeiro: desde os ritos de proteção até a religião, o candomblé, justamente por serem escolas de clãs, de famílias. Somos poucos carnavalescos negros, mas em São Paulo, encontrei-me com esse sistema que abriu a minha mente para a consciência racial e como levar essas discussões para a avenida. Sou um seguidor e fã de Joãozinho Trinta e gosto de transformar essas temáticas em Carnaval.
Geledés – Dá para aliar a mensagem política à escola de samba?
Sim, dá. As várias situações excludentes de setores neste momento do país, sejam por vias da questão racial´, LGBT+, indígena, dos deficientes, vêm abrindo a cabeça do pessoal das escolas de samba. É uma onda que começou no Rio, e vem tomando a cultura no país. Não é só nas escolas de samba que isso acontece, mas também nos maracatus, nos blocos de Carnaval, etc. A rua está falando sobre isso. A origem do Carnaval é uma origem crítica ao poder, então continuamos a fazer isso agora, de uma maneira mais incisiva e com maior embasamento histórico. Os nossos discursos devem se encontrar, principalmente os de origem negra. Estar ocupando esses dias de folia na televisão, nas ruas, é um momento importante para a gente falar o que a gente quer.
A Mooca é uma escola nova, em um bairro italiano, e que aos poucos está se fazendo grande dentro do carnaval paulistano, principalmente através de seus sambas-enredos e de seu posicionamento político social. Depois que conheceu Abdias, a escola começou a enxergar o Carnaval de uma forma diferente. É impressionante como ela vem se transformado, inclusive, entre seus apoiadores e frequentadores. A gente não está querendo dizer que outras pessoas não devam apoiar a MuM, não é isso. Mas o samba que hoje a escola faz defende a maior parte da população brasileira, a negra, a favelada, que é o que o Abdias fez. E isso não é uma questão de querer privilégios, mas sim de igualdades. Como o samba mesmo diz, “só quero paz e igualdade”. É lindo o movimento que a escola de samba está fazendo!
“A origem do Carnaval é uma origem crítica ao poder, então continuamos a fazer isso agora, de uma maneira mais incisiva e com maior embasamento histórico.”
Geledés – Como se chegou à ideia de homenagear o professor, senador e dramaturgo, Abdias de Nascimento, no samba-enredo da Mocidade Unido da Mooca (MUM)?
Há alguns anos, eu tinha que preparar uma pesquisa de enredo para a União da Ilha e encontrei a história do Teatro Experimental do Negro (TEN) e, obviamente, sobre o trabalho de Abdias Nascimento. Veio, então, a ideia de falar sobre história, arte e política, juntas num só momento. Mas o que mais me levou a fazer esse samba, foi o fato de eu me assustar como as pessoas desconhecem Abdias, apesar de ele ter sido senador e, ao menos para mim, o homem mais importante da história contemporânea negra no país. A grande massa não sabe quem é o professor Abdias. E muitos jovens negros da luta não sabem que suas pautas são as mesmas de Abdias há 40 anos. Era importante para mim trazer o nome desse homem na boca das pessoas, para que tivessem ideia de seus passos. Vivemos dizendo no movimento negro que nossos passos vêm de longe, pois então, Abdias são os nossos passos e ele nos atravessa através de nossos discursos, de nossas lutas.
Geledés – Como o legado de Abdias Nacimento se interlaça com os propósitos da escola de samba MUM?
O legado do Abdias está criando uma consciência para as pessoas que fazem parte da escola. A luta dela está voltada para outros meios, mas o Abdias está deixando um novo tipo de pensamento de como ver a sociedade e a política.
Geledés – A MUM se manifestou publicamente em relação ao genocídio dos jovens negros em Paraisópolis, em São Paulo. Por que e como fez isso?
A escola se posicionou contra as mortes de Paraisópolis, com uma faixa em uma de suas apresentações públicas pedindo esclarecimento. Essa onda que o Carnaval vem fazendo, a escola já está surfando de forma completamente espontânea. Talvez no Carnaval ninguém se posicione em relação a isso por achar que a festa não é para esse tipo de coisa. Mas o Carnaval deve se posicionar sim e eu fico muito feliz que tenha acontecido. Isso mostra que o trabalho que eu faço tem sentido.
“No enredo, há uma frase que diz que no peito de cada negro há um quilombo pulsando. É para que os negros desse país criem essa consciência – e esse era o maior sonho de Abdias, dito, inclusive, em uma de suas entrevistas antes de morrer. Imagine, então, se cada negro tivesse essa consciência da não subserviência, da noção de seu valor?”
Geledés– Qual o papel das escolas de samba diante da violência racial?
A escola de samba já é um reduto de acolhimento, de espaço democrático, mas ela também deve criar consciência dessa democracia internamente. Então, ela precisa ser um lugar de ensino, de cultura ao entendimento de sociabilidade.
Geledés- Alguns trechos do enredo fazem referências à resistência da população negra, como o levante dos malês. Qual o sentido de resgatar a história da negritude brasileira no atual momento do país?
No final do enredo, que é contado em primeira pessoa e trata do legado de Abdias, ele faz um grande levante. Escolhi três formas de manifestação: histórica, espiritual e cultural. Nesse momento, ele convoca a revolta de malês. Por que? Porque nesse samba-enredo há uma frase que diz que no peito de cada negro há um quilombo pulsando. É para que os negros desse país criem essa consciência – e esse era o maior sonho de Abdias, dito, inclusive, em uma de suas entrevistas antes de morrer. Imagine, então, se cada negro tivesse essa consciência da não subserviência, da noção de seu valor? Os maleses tinham noção de tudo o que tinham na África antes de serem escravizados; tinham noção da sociedade que eles estavam construindo. Eles não aceitavam serem escravos. Da forma histórica, Abdias convoca a revolta dos malês; da forma espiritual, convoca os caboclos de flechas – a mistura de negros e índios na religião -, e diz que a flecha de cada caboclo atinja o coração de negro para que possa romper barreiras com a sua cultura. E por último, na parte cultural, são citados os filhos de Gandhi para que cada negro ecoe os seus tambores nas ruas.