Texto de Ana Rita Dutra com colaboração de Bia Cardoso.
Incômodo, desacomodação, inquietação, creio que estas foram sensações presenciadas ao ser questionada sobre feminismo, violência e mulheres negras em uma atividade com adolescentes algum tempo atrás. Lembro até hoje da minha cara de parede quando rapidamente fui buscar referências na minha mente e não as encontrei. Após discussões sobre o que é ser uma mulher, sobre o que legitima a violência contra as mesmas, esse assunto marcou presença entre os adolescentes e trouxe-me inquietações. Como militante me pus a refletir, mais uma vez, sobre as bases do meu feminismo, sobre as bases dos diversos feminismos que compõe o movimento de mulheres. Esse processo que começou ali, segue até hoje.
Conversar sobre a realidade das mulheres negras, juntamente com estas jovens levou-me a uma discussão pessoal. Me fez pensar novamente, sobre minha própria realidade enquanto mulher militante, feminista, não-negra. Ao participar de algumas discussões, me parece que o feminismo ainda engatinha no que tange a incorporação da diversidade das mulheres.
De acordo com Lelia González (BAIRROS, 2000), as concepções do feminismo brasileiro:
“Padeciam de duas dificuldades para as mulheres negras: de um lado, o viés eurocentrista do feminismo brasileiro, ao omitir a centralidade da questão de raça nas hierarquias de gênero presentes na sociedade, e ao universalizar os valores de uma cultura particular (a ocidental) para o conjunto das mulheres, sem as mediações que os processos de dominação, violência e exploração que estão na base da interação entre brancos e não-brancos, constitui-se em mais um eixo articulador do mito da democracia racial e do ideal de branqueamento. Por outro lado, também revela um distanciamento da realidade vivida pela mulher negra ao negar toda uma história feita de resistências e de lutas, em que essa mulher tem sido protagonista graças à dinâmica de uma memória cultural ancestral – que nada tem a ver com o eurocentrismo desse tipo de feminismo.
Sueli Carneiro utiliza a expressão “enegrecer o feminismo” buscando assinalar a identidade branca e ocidental da formulação clássica feminista. Por outro lado, também revela a insuficiência teórica e prática para integrar as diferentes expressões do feminino construídos em sociedades multirraciais e pluriculturais.
O feminismo de hoje deveria ser plural. Se o feminismo é um movimento das mulheres, ele deve ser tão plural quanto as mulheres são plurais. Nesta perspectiva de pluralidade, a pesquisadora Sueli Carneiro (CARNEIRO, 2003), coloca que o feminismo brasileiro em muito não contemplou as mulheres negras:
“Porém, em conformidade com outros movimentos sociais progressistas da sociedade brasileira, o feminismo esteve, também, por longo tempo, prisioneiro da visão eurocêntrica e universalizante das mulheres. A conseqüência disso foi a incapacidade de reconhecer as diferenças e desigualdades presentes no universo feminino, a despeito da identidade biológica. Dessa forma, as vozes silenciadas e os corpos estigmatizados de mulheres vítimas de outras formas de opressão além do sexismo, continuaram no silêncio e na invisibilidade.
A realidade trazida por Sueli Carneiro vai ao encontro com a dificuldade que me deparei ao ser questionada por aquelas jovens. Minha formação tinha um grande vazio sobre as relações entre gênero e raça, minha jovem militância feminista não encontrou uma rotina onde estas questões fossem trabalhadas. O movimento feminista que me contempla enquanto mulher não-negra, não percebe-se ainda em plenitude para contemplar a mulher negra. Enquanto, sobre nós mulheres, mesmo que afrodescendentes, recaia o sexismo, o machismo, as desigualdades de gênero, preconceitos e violências, sobre a mulher negra recai essas mesmas opressões baseadas no gênero considerado feminino, somando-se a esta “lista de violências”, o racismo.
Enquanto os movimentos feministas não incorporarem a pluralidade legítima das mulheres em sua militância, não estaremos lutando efetivamente pelos direitos das mulheres. Lutar pelos direitos das mulheres negras, indígenas, lésbicas, transgêneros ou transexuais passa por abrir mão de privilégios. Privilégios autenticados pela existência da mulher considerada sujeito de direitos, que é uma mulher branca, heterossexual, de classe média e alfabetizada. Olhar além do contexto privilegiado em que estou dentro de um movimento feminista, que condiciona suas bandeiras há uma mulher padrão que é sujeito de direitos, é um desafio e necessidade fundamental para qualquer mudança efetiva no atual quadro de violações de direitos humanos das mulheres em suas especificidades.
Os coletivos de mulheres negras tem aberto caminhos e diálogos para pensar um feminismo mais plural e enegrecido. A ONG Criola produz diversas publicações. Coletivos como o Pretas Candangas realizam ações sistemáticas de combate ao racismo, machismo e sexismo. O portal Geledés tornou-se referência na internet. E, recentemente, tivemos a criação do coletivo Blogueiras Negras.
Essas são algumas iniciativas marcantes que contribuem para ampliar o lugar da mulher negra dentro do feminismo, mas é preciso sempre abrir mais e mais espaços. Conversando sobre isso com Charô, Larissa Santiago e Verônica Rocha — coordenadoras das Blogueiras Negras — temos uma noção mais ampla de alguns elementos que motivam a criação de um grupo de mulheres negras e como elas veem a presença das mulheres negras na internet:
“Em nome da comunidade Blogueiras Negras, agradecemos a lembrança e a oportunidade de falar sobre a participação da mulher negra no mundo e na internet, assunto tão importante não somente para a comunidade feminista, mas para todos aqueles que tem pensado e lutado pelos direitos humanos.
Nossa presença na rede é incomensurável. Há inúmeras poderosas da rede que são negras e afrodescendentes, falando de assuntos diversos como política, negritude, literatura, beleza, racismo, psicologia, maternidade. E certamente estamos sendo muito breves nessa descrição. A cada dia descobrimos novas autoras, cheias de ideias e bons projetos acontecendo.
Porém, essa produção muita vezes passa em brancas nuvens, não recebe o destaque que merece. Em alguns casos atrai um grupo muito específico de pessoas devido a sua uma visão de mundo diferenciada em relação às questões da negritude, da mulher negra. Reunir essas pessoas, ou pelo menos parte delas, nos pareceu ser o primeiro passo para aumentar a visibilidade dessa produção.
Assim surgiu o Blogueiras Negras, logo após a experiência bem-sucedida da Blogagem Coletiva da Mulher Negra em 2012. Um coletivo que ama escrever e o fazem muito bem. Um grupo feito de maravilhosas, falando sobre aquilo que nos alimenta, aflige e movimenta. Um espaço de discussão feito de gente que falando sobre diversos assuntos, de diversos pontos de vista mas que compartilhando identidade, visões de mundo e amor pela escrita.
Fica um grande desafio pessoal e coletivo. Pensar um movimento de mulheres onde as reflexões e intervenções nas relações de gênero e raça estejam presentes, imersas e atuais. Ttanto no cotidiano do feminismo de rua, como no acadêmico, no feminismo organizado ou autônomo. É refletindo sobre nossos privilégios, na relação, na conversação e reconhecimento do outro enquanto legítimo que poderemos pensar estratégias e avançar por um feminismo cada vez menos branco, menos elitizado, menos europeu, mais autônomo e que faça real diferença na vida das pessoas.
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Referências
BAIRROS, Luiza. “Lembrando Lelia Gonzalez“. Em WERNECK, Jurema; MENDONÇA, Maisa e WHITE, Evelyn C. O livro da saúde das mulheres negras – nossos passos vêm de longe. Rio de Janeiro, Criola/Pallas, 2000.
CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento (em .pdf). Revista Estudos Avançados. N. 17 (49): 117-32, 2003.
CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero (em .pdf).
Fonte: Blogueiras Feministas
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