No último dia 14, a vice-presidenta da Colômbia, Francia Márquez, esteve no fechamento do evento internacional “Garantir a posse da terra e os direitos territoriais dos povos afrodescendentes na América Latina e no Caribe: Um caminho efetivo para a conservação e a ação contra as alterações climáticas”, que ocorreu entre os dias 11 e 14 de junho, em Bogotá, Colômbia. Com representantes do Brasil e de mais 17 países da região, o encontro culminou na criação de um documento com 16 recomendações, escrito pela Coligação para os Direitos Territoriais e Ambientais dos Povos Afrodescendentes da América Latina e das Caraíbas, que se formou em 2022, no Vale de Chota, Equador, com o objetivo de direitos territoriais e ambientais dos povos afrodescendentes.
No evento, Márquez destacou o trabalho significativo realizado pelo Brasil, Cuba e Venezuela em prol dos povos afrodescendentes, mas lamentou a falta de esforços semelhantes em outros países do continente. Ela reforçou a necessidade de uma maior conexão entre os estados da América Latina e do Caribe, apontando que as relações Sul-Sul são negligenciadas em favor das relações com os países do Norte.
Márquez criticou a falta de dados precisos sobre a população afrodescendente, que impede uma avaliação realista das condições de exclusão e marginalidade vividas por essas comunidades na maioria dos países da América Latina e Caribe. Além disso, a vice-presidenta falou sobre a necessidade de emancipação desses países do pensamento colonial e ressaltou que “a presença de uma mulher negra na vice-presidência da Colômbia é apenas um meio, não um fim, para a transformação da realidade das comunidades afrodescendentes na região”.
Uma das principais críticas em seu discurso foi a ausência de menções aos povos afrodescendentes em instrumentos internacionais sobre meio ambiente, mudança climática e diversidade biológica, e salientou a necessidade de incluir essa categoria nos documentos e políticas globais. “A Organização das Nações Unidas inventou que quando fala de indígenas contempla os afrodescendentes. Temos a tarefa de que se coloque dentro da diversidade biológica a categoria de povos afrodescendentes. Pedimos ao governo do Brasil que acompanhe a Colômbia nesta solicitação. Isso é uma ferramenta enorme para salvaguardar e proteger os saberes e a biodiversidade dos nossos territórios”, disse Márquez.
Reivindicações às mulheres afrodescendentes
A Coligação para os Direitos Territoriais e Ambientais dos Povos Afrodescendentes da América Latina e das Caraíbas, no documento apresentado no último dia do evento, destacou a importância das mulheres afrodescendentes na luta pela conservação ambiental e justiça climática. Foi enfatizado o papel crucial dessas mulheres como detentoras e transmissoras de conhecimentos tradicionais, essenciais para a proteção da biodiversidade, soberania alimentar e autonomia econômica.
A coalizão exige a geração de processos de sustentabilidade econômica para “as mulheres dos povos afrodescendentes, suas famílias e comunidades, com financiamento direto para o acesso à terra, empoderamento, segurança e redução/eliminação das múltiplas formas de violência”. É reivindicada também a atenção ao direito da mulher afrodescendente à propriedade da terra e à geração de sustentabilidade econômica para si próprias, para as suas famílias e para as suas comunidades. “O financiamento direto às mulheres garante o desenvolvimento, gera empoderamento, segurança e, sobretudo, reduzirá em grande medida as múltiplas formas de violência”, consta na 13ª reivindicação da coligação.
As recomendações também incluíram a necessidade de assegurar ambientes limpos e sustentáveis para as comunidades, além de fortalecer a implementação dos direitos coletivos e individuais dos afrodescendentes na região, mecanismos de financiamento direto para os povos afrodescendentes, reconhecimento de territórios ancestrais como eficientes para a conservação da biodiversidade e proteção de defensores ambientais afrodescendentes.
A membra do Processo de Comunidades Negras (PNC) Eny Ceron destacou que as mulheres da coalizão estão posicionando uma discussão sobre o lugar que as mulheres afrodescendentes ocupam na conservação ambiental. “É preciso identificar o que temos pendente, o que afeta particularmente as mulheres negras ou afrodescendentes no interior dos nossos territórios”, evidenciou.
Mobilização para a COP e Futuras Ações
Para a 16ª edição da Conferência sobre Biodiversidade, a COP da Convenção da ONU sobre Diversidade Biológica (CBD) ou apenas COP 16, que será realizada em Cali, na Colômbia, de 21 de outubro a 1º de novembro de 2024, Francia Márquez ressaltou a importância da incidência dos movimentos sociais da América Latina e do Caribe para garantir a criação da categoria de povos afrodescendentes nas discussões globais sobre diversidade biológica.
De acordo com o secretário para políticas quilombolas do Ministério da Igualdade Racial (MIR), Ronaldo dos Santos, o evento foi uma interlocução com a COP 16. “Ao término do evento, nossa delegação vai discutir a posição do Brasil, as tarefas de casa rumo a COP da Biodiversidade, fundamental para as comunidades quilombolas. Pensaremos estrategicamente, governo e sociedade civil, sobre nossa participação, tendo em vista a COP 30, que será em Belém, em 2025.” Santos expôs ainda que cada um desses eventos constrói subsídios para os próximos, culminando na construção e consolidação de direitos dos povos afrodescendentes.
Durante o evento internacional sobre direitos territoriais dos povos afrodescendentes na América Latina e Caribe, Davi Pereira, consultor da Tenure Facility, destacou ao Portal Geledés os desafios enfrentados pelas comunidades quilombolas no Brasil. Pereira sublinhou a necessidade urgente de destravar os processos de titulação das terras dessas comunidades, um problema que, segundo ele, ainda é um grande gargalo no país. “Os governos nacionais não implementam direito à terra, então esse é o momento de discussão transnacional. Precisamos potencializar legislações internacionais e convenções que implicam diretamente na propriedade dos nossos territórios”, argumentou.
O representante da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) do Amazonas, Douglas Castro, afirmou ser de grande importância a inserção da temática quilombola de seu estado nas discussões internacionais sobre questões ambientais. “Precisamos estar nesses espaços para trazer mais visibilidade pra Amazônia, dentro e fora do Brasil, porque precisamos tanto preservar a biodiversidade quanto o meio ambiente, conciliar esta relação com o ser humano. Nós, quilombolas, defendemos a natureza no dia a dia e devemos estar no meio destas grandes lideranças presentes aqui”, explicou Castro.
Para Maria Del Catacolí Vásquez, representante do Ministério da Igualdade e Equidade da Colômbia, os quatro dias de evento foram uma construção coletiva focada nas questões afrodescendentes. “Embora em diversas convenções não sejamos vistos como sujeitos de direitos coletivos, aqui nos reconhecemos como tais”, concluiu Vásquez.
Ana Luiza Biazeto é assessora internacional de Geledés – Instituto da Mulher Negra, jornalista, mestre em Serviço Social e atualmente doutoranda em Estudos Latino-Americanos na Universidade do Texas em Austin. Sua pesquisa foca no encarceramento de mulheres negras em São Paulo e no impacto dessa realidade em suas famílias.