Mulheres de Axé: caminhando pra resistir!

Foto: Fabio Teixeira

Desde 2008, uma modificação na lei brasileira considera crime inafiançável invasões a templos e agressões a religiosos de qualquer credo. A pena vai de um a três anos de detenção, sendo julgado em Varas Criminais e não mais nos Juizados Especiais.

Por Vilma Piedad, do #AgoraÉQueSãoElas

Foto: Fabio Teixeira

Mas, o tempo passa e a lei não se aplica. Amanhã, 17 de setembro, vamos à décima caminhada pela Liberdade Religiosa em Copacabana, Rio de Janeiro. Vamos apelar mais uma vez ao respeito por nossa tradição, à liberdade religiosa! Não queremos tolerância. Queremos garantia de direitos.

A violação de direitos está atingindo, duramente, os Povos Tradicionais de Matriz Africana na Cidade do Rio de Janeiro, em especial as Casas de Axé situadas na Baixada Fluminense. Não é novidade que o fundamentalismo avança a passos largos, galopantes, em todas as instâncias, travando os campos progressistas do fazer político. Mas não estamos falando de qualquer intolerância. De qualquer culto. De qualquer manifestação religiosa. Nossas práticas sagradas tem Cor… é Preta… Preta. Aí… tudo que é Preto é ruim, nefasto, tá lá no dicionário…

A religiosidade de Matriz Africana na diáspora brasileira ressignificou símbolos, territórios. E a África dentro de cada terreiro de Candomblé ordenou a liturgia e resiste até hoje seguindo o caminho deixado por nossos ancestrais. Contudo, enfrentamos hoje, talvez mais do que nunca, o desrespeito à memória de nossa ancestralidade, ao nosso Sagrado. Sagrado fundado pelas Mulheres. Mulheres de Axé. Nossas Matriarcas. Resistência política, religiosa, cultural. As Mulheres de Axé são as pioneiras, fundantes do nosso Sagrado que está sendo depredado!

Não esqueçamos que o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa nasceu por conta da marca criminosa da intolerância, do racismo que vitimou uma Matriarca de Axé:

De acordo com a SEPPIR, o dia 21 de janeiro – Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, instituído pela Lei nº 11.635, de 27 de dezembro de 2007, rememora o dia do falecimento da Iyalorixá Mãe Gilda, do terreiro Axé Abassá de Ogum (BA), vítima de intolerância por ser praticante de religião de matriz africana. A sacerdotisa foi acusada de charlatanismo, sua casa atacada e pessoas da comunidade foram agredidas. Mãe Gilda faleceu no dia 21 de janeiro de 2000, vítima de infarto.

O que será que o Feminismo Contemporâneo tem a ver com isso? Tudo a ver. Como vamos conseguir, de fato, construir um Feminismo Dialógico Interseccional se nossa história, nossos valores civilizatórios não forem incorporados nas práticas e ações do Feminismo? Prá ser Dialógico Interseccional, o Feminismo precisa mudar ainda mais a cor, ficar mais preta. São muitos tons de Pretas.

O Feminismo Brasileiro precisa conhecer nossa história. Precisa falar do racismo! A situação das Religiões Afro-Brasileiras é a mais vulnerável frente às violações dos direitos assegurados na Constituição de 1988, que garante a liberdade de crença e culto (artigos 5º e 19º). A maioria dos Terreiros são liderados por Mulheres. E aí? Por uma Democracia Feminista com o toque do tambor…com o girar das nossas saias. Por uma Democracia que inclua todas as Mulheres!

Vamos aos dados :

Os dados demonstram que os adeptos e Terreiros de Religiões de Matriz Africana são a maioria entre os casos denominados de Intolerância Religiosa. Dos 300 casos denunciados ao Disque 100, da Secretaria de Direitos Humanos, 26,19% das vítimas eram candomblecistas e 25,79% eram umbandistas. Segundo dados da Secretaria dos Direitos Humanos (SDH), vinculada ao Ministério da Justiça, entre janeiro e setembro de 2016 (dado mais recente disponível), foram registradas 300 denúncias de Intolerância Religiosa, pelo Disque 100. Na comparação com o mesmo período do ano passado, que teve 146 denúncias, foi registrado um aumento de 105%.

Contudo, os ataques, perseguições, são mais antigas por aqui, do possa parecer. Prá falar disso, como diria Lélia Gonzalez, vamos revisitar um pouco a História…

Registrado pelos estudiosos da História do Brasil, a Quebra de Xangô, ou o Dia do Quebra ou Quebra de 1912, foi um crime hediondo de Intolerância Religiosa (daqui por diante denomino como Racismo Religioso) que aconteceu no dia 1 de fevereiro de 1912 em Maceió, Alagoas.

O ato culminou com a invasão e destruição dos principais Terreiros de Xangô em Maceió. A História cataloga esse terrível episódio como a Quebra de 1912. Todas as Casas de Culto Afro-Brasileiro existentes na região foram destruídas. Terreiros foram invadidos, objetos sagrados retirados e queimados em praça pública. Pais e Mães de Santo foram espancados.

A partir daí, os adeptos, iniciados nas práticas de Culto aos Orixás, criaram o chamado Xangô Rezado Baixo. E parece que estamos caminhando nessa direção. Retrocesso.

No período de 1889-1930 era comum a polícia perseguir os Cultos das Religiões de Matriz Africana, invadindo terreiros e apreendendo objetos sagrados. Apesar da Constituição de 1891 garantir a liberdade de crença e culto, o Código Penal de 1890 criminalizava as Casas Sagradas e tipificava as manifestações, práticas rituais, como curandeirismo, baixo espiritismo , charlatanismo , alegando o exercício ilegal da medicina.

Esse mesmo Código Penal também criminalizava a Capoeira e o Samba. Ou seja, tudo que fosse resultante da Cultura Afro-Brasileira. Aqui, mais uma vez, as Mulheres de Axé, resistiram. No Rio de janeiro, Tia Ciata, é referência na preservação do Samba e dos Rituais .

Já no período da República, o Candomblé foi proibido de exercer as suas atividades e os Terreiros ficaram subjugados à Delegacia de Jogos, Entorpecentes e Lenocínio. Portanto, sempre estivemos à margem e o Estado Brasileiro não coibiu, de forma efetiva, as várias manifestações de Racismo Religioso que ocorreram no País até os dias de hoje.

Não esqueçamos que a Polícia Civil do Rio de Janeiro tem em seu poder, no Museu da Criminologia, mais de 200 peças sagradas da Umbanda e Candomblé, apreendidas desde a Primeira República (1889-1930). Nessa época as Religiões Afro-Brasileiras eram duramente perseguidas e proibidas. Entre 1945 e 1985 o acervo religioso apreendido foi classificado de forma racista, pejorativa como “Coleção de Magia Negra” .

Coleção da Magia Negra. Ora… se tem Magia Negra é porque existe uma Magia Branca. É isso mesmo? Olha aí o racismo linguístico, ideológico alimentando a Branquitude. Branquitude enquanto sistema de opressão e privilégios. Racismo Religioso.

Se a Magia é Branca … é boa. Bendita. Se a Magia é Negra…é ruim. Maldita. Tá tudo na língua que sustenta a linguagem que alimenta e retroalimenta o imaginário social no cotidiano.

Lá se vão 100 anos longos anos e o Estado continua mantendo esse acervo cultural e religioso sobre seu poder. Preso. No extinto Museu de Criminologia. Ainda hoje, existe campanha denominada “Libertem o Nosso sagrado”, para que esses objetos possam ser destinados a outro museu. Com respeito. Reconhecimento. Tradição.

Em 2017, seguem arrebentando os Terreiros de forma violenta. Estão silenciando nosso Sagrado… nosso Saber Ancestral. Há uma cultura criminosa que instaura o ódio religioso se volta, de forma absurda, contra os Terreiros na Cidade do Rio de Janeiro.

Mas, como vimos, a história não aponta novidades nesse processo. O Racismo Religioso vem de longe… acompanha nossos passos desde que nos trouxeram à força prá cá. Somente em 2015 foi criada uma agência especificamente dedicada à Discriminação Religiosa, chamada Assessoria de Diversidade Religiosa e Direitos Humanos.

O Racismo Religioso não nos dá tréguas. E o Feminismo Contemporâneo não pode ser conivente com ele. Por isso precisamos caminhar!

RUMO À MAIS UMA CAMINHADA PELA LIBERDADE RELIGIOSA! AMANHÃ. COPACABANA.

Às 13 hs. Sendo Mulheres de Axé ou Não. Essa luta, essa caminhada é prá todas nós!

*Vilma Piedade é Mulher Preta. Ativista, de Axé. Membra da RENAFRO, integrante da PartidA-RJ, da AMB-Articulação de Mulheres Brasileiras.

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