Mulheres de luta: as mães de ingênuos por força da Lei do Ventre Livre

FONTELucimar Felisberto dos Santos, enviado para o Portal Geledés

Em 1880, um número considerável de mães solteiras escravizadas com filhos menores que viviam no Rio de Janeiro, o Município Neutro, recebeu carta de alforria graças aos recursos do “Fundo de Emancipação de Escravos”. O fundo foi um instrumento criado por meio da Lei n. 2.040, de 28 de setembro de1871 – aquela que ficou conhecida como a Lei do Ventre Livre. Ele tinha por fim reunir recursos para a libertação de quantas pessoas escravizadas fosse possível nas províncias e na capital do Império, também chamada de Município Neutro ou corte. Sendo assim, o registro de 271 mulheres alforriadas na capital imperial nos é valioso sob duas perspectivas. 

Primeiramente, o dado chama atenção pelo fato de elas constituírem uma das categorias familiares que deveriam ser priorizadas no acesso aos recursos pecuniários. Ou seja, de acordo com os critérios de classificação utilizados por uma junta constituída para qualificar, selecionar ou excluir os escravizados, elas deveriam ser favorecidas preferencialmente pela indenização destinada à concessão de alforria. Além disso, essa alforria de 271 mulheres ilumina o fato de elas serem mães de crianças consideradas ingênuas, nascidas de seus ventres já libertos, enquanto elas próprias, as progenitoras, até então seguissem escravizadas, tal como definia a mesma lei. 

Essa imagem da separação do útero da mulher escravizada do restante do seu corpo é algo que merece a nossa atenção. Com efeito, aquelas crianças inauguravam um novo status cívico e explicitavam as conexões entre os mundos da escravidão e da liberdade. Por serem nascidas de uma cativa de “ventre livre”, não herdariam a escravidão, mas também não seriam consideradas social ou juridicamente “livres” em plenitude. 

A obrigatoriedade da criação do Fundo de Emancipação de Escravos no Império do Brasil foi estabelecida no artigo 3º da Lei n. 2.040/71. Por sua vez, o artigo 27 do Decreto de n. 5.135, de 13 de novembro de 1872, criado para regulamentar a Lei do Ventre Livre, instituiu os critérios de classificação e exclusão. As mães solteiras com filhos menores constituíram a categoria familiar mais expressiva nas listas de escravizados libertos no Rio de Janeiro, entre 1876 e 1880. Além delas, outras categorias familiares de escravizados constaram nas listagens, a saber: escravas casadas com homens livres (24); escravos casados com mulheres livres (28); cônjuges de diferentes senhores (17); cônjuges com filhos livres em virtude da Lei (61); e cônjuges com filhos escravos menores (191). 

De acordo com o Recenseamento de 1872, o Município Neutro possuía um total de 48.939 escravizados. Apesar de um número tão expressivo de pessoas à espera de alforria, a determinação era que só após completar a libertação de toda uma categoria se passasse a outra. Isso fez, por exemplo, que os cônjuges sem filhos não tenham sido contemplados até 1880. Pelos menos não no Rio de Janeiro, onde a urbanidade da escravização imprimia uma especificidade própria ao escravismo. 

Outro detalhe interessante advém do dinamismo econômico da capital brasileira como principal centro econômico do Império. A análise da estrutura ocupacional dos classificados pela junta revela um mosaico de ocupações que vai de empregados em categorias como a agrícola (40%) e no serviço doméstico (23%) àquelas semiespecializadas ou especializadas (cerca de 35%). Ainda que alguns adultos aparecessem como “sem profissão” (2%), os registros documentais revelam que, além de constituírem unidades familiares assim reconhecidas pelos agentes do governo imperial, os escravizados estavam plenamente inseridos no mundo do capital e do trabalho, inclusive o “assalariado”.

Esse quadro nos permite chamar atenção para dois pontos importantes: 1) Os múltiplos arranjos de famílias negras, possibilitados aos escravizados pela conjuntura do escravismo, foram reconhecidos pelo governo Imperial e pelos legisladores; 2) A Lei de 28 de setembro de 1871 figurou como uma forma de intervenção direta na relação senhor/escravo. Inegavelmente, os senhores perderam certos privilégios ou prerrogativas quando lhes foi retirado o direito único de concessão da alforria. Tais aspectos têm sido analisados pela historiografia brasileira nas últimas décadas.

É fundamental, no entanto, evidenciar que, em seu conjunto, as leis abolicionistas lidaram, sobretudo, com a questão da preservação do direito à propriedade, amplamente defendida nas arenas políticas imperiais na segunda metade do século XIX. De tal sorte, os legisladores viram aí a possibilidade de os cativos – por sua já inserção nos mundos da liberdade, do capital e do trabalho – serem o agente público com o maior potencial para indenizar os proprietários, de maneira a contribuir efetivamente na principal agenda do fim da escravidão.

Monumento à Mãe Preta do artista sorocabano Osvaldo Saiane. Praça Castro Alves, Sorocaba-SP. Fonte: Site da Prefeitura de Sorocaba/ http://turismo.sorocaba.sp.gov.br/visite/monumento-a-mae-preta/

Isso pode ser facilmente comprovado nos textos das leis abolicionistas. O já mencionado Decreto n. 5.135, que corresponde ao regulamento geral para a execução da Lei n. 2.040, trouxe a obrigatoriedade de os escravizados colaborarem com Fundo de Emancipação, sob o risco de serem até mesmo excluídos do lento e gradual processo que colocaria fim à escravidão: 

 

Art. 46: O escravo é obrigado a contribuir, até a importância do preço de sua alforria ou da família a que pertencer, com as doações, legados e heranças que tenha obtido com esse destino especial. Os que não quiseram fazê-lo perderão o lugar de ordem na classificação e serão preteridos.”

 

Por um lado, a Lei do Ventre Livre tornava legal o direito costumeiro de os escravos formarem um pecúlio, juntarem dinheiro para pagar pelo seu próprio valor, o que, com o consentimento do senhor, poderia ser obtido através do seu trabalho. Por outro lado, isso significava que as elites políticas interpretavam os sentidos das lutas dos escravizados. É preciso explicitar, portanto, que a regulamentação se aproveitava das práticas cotidianas da própria experiência dos cativos, de modo que tanto as possibilidades criadas pelas mulheres quanto os ganhos em atividades de trabalho associadas ao mundo livre não passaram despercebidos. 

Além disso, embora a Lei n. 2.040 estivesse fundamentada no princípio escravista do partus sequitur ventrem (a descendência segue a condição do ventre) e estabelecer o ventre como o lócus a partir de onde se poria termo à escravidão, a questão da maternidade/afetividade da mulher negra escravizada não foi considerada. A esse respeito, a lei dizia o seguinte: 

 

“Art. 5º: Os filhos da mulher escrava, livres pela lei, ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães até a idade de 8 ou de 21 anos, conforme as condições da mesma lei”.

 

Não é difícil nos conectarmos com as expectativas de um mundo sem escravidão que, eventualmente, pautaram os projetos individuais e coletivos projetados por membros das diversas categorias de famílias constituídas por, pelo menos, uma pessoa escravizada. No limite, aquelas expectativas tornariam os bastidores da lei complexos. No caso da família que tivesse por membro uma mãe de ingênuos, a Lei do Ventre Livre inaugurava um período de disputas entre essas mulheres, seus proprietários e o governo imperial, pelo destino das crianças nascidas a partir da data de sua promulgação. 

Disso sobressai a preocupação do parlamento brasileiro com a garantia do uso da mão de obra da descendência do ventre liberto, por, pelo menos, mais duas décadas. As análises historiográficas evidenciam que a alternativa de explorar a/o ingênua/o até os 21 anos de idade foi a escolha dos proprietários das mães de ingênuos por força da Lei do Ventre Livre. Teriam eles, até mesmo, o direito “legal” ao aluguel da mão de obra dos menores, em troca do seu tratamento e criação. Mesmo sendo categorizados como crianças com necessidades de cuidados em sua criação, também foram incluídas naquela agenda do fim da escravidão que fazia do libertando o potencial indenizador de seu libertador. De acordo com o segundo parágrafo do primeiro artigo da lei: 

Qualquer desses menores poderá remir-se do ônus de servir, mediante prévia indenização pecuniária, que por si ou por outrem ofereça ao senhor de sua mãe, procedendo-se à avaliação dos serviços pelo tempo que lhe restar a preencher, se não houver acordo sobre o quantum da mesma indenização”.

Documentações como os anúncios de fugas publicados em jornais que circulavam na corte e os registros de matrículas de entrada de detentos na Casa de Detenção do Rio de Janeiro nos legaram fragmentos de relatos de sagas que podem ser consideradas páginas da vida, e que trazem as experiências maternais de mães negras antes e após a Lei do Ventre Livre. A partir desses registros, podemos acessar histórias de mulheres negras escravizadas que reagiram ao que lhes foi imposto pela lei que deu liberdade formal ao seu ventre.

Lendo os anúncios de jornais que circulavam nas décadas finais do Oitocentos, observamos vários que notificam casos de “fugitivas” acompanhadas por seus filhos escravizados, libertos, livres ou ingênuos. Conforme o anunciado no Jornal do Commercio em 3 de abril de 1885:

“100$000 – Que se dá de gratificação a quem apreender e levar à fazenda de Boa vista, de propriedade de Francisco da Silva Vieira Pirahy, na estação de Capivari da Estrada de ferro da Leopoldina, a escrava de nome Maria Rufina, cor preta, alta e magra, rosto comprido e bexiguenta; pés pequenos, que embarcando na estação do Recreio com destino à Corte fugiu no dia 07 do corrente, levando consigo seu filho ingênuo de nome Manoel”.

Diante dos últimos limites impostos pela escravidão, Maria Rufina utilizava a fuga como uma das estratégias de resistência, sem abrir mão da companhia de seu rebento. Tudo leva a crer que a experiência de luta pela liberdade era compartilhada com inúmeras outras mães, impactadas pelos efeitos sociais da lei. Muitas mulheres escravizadas foram detidas e encaminhadas à Casa de Detenção da Corte, sendo matriculadas nos livros por fugirem ou por suspeita de fuga.

É preciso reconhecer ainda que muitas foram matriculadas como queixantes. Nesses casos, produzindo leituras próprias do texto legislativo, muitas mulheres escravizadas procuraram as autoridades policiais e se queixaram por não concordarem com a lei. Podiam ter como queixa o fato de entenderem que, na prática, o instrumento jurídico lhes retirava direitos duramente adquiridos na experiência do cativeiro. Mesmo no caso de os seus proprietários optarem por receber a indenização, as mães de ingênuos por força da Lei do Ventre Livre não tinham sua maternagem considerada, não lhe seria dado o direito de criar e de cuidar de seus filhos. Eles seriam encaminhados para instituições designadas para esse fim. No Artigo 2º, § 1º, lê-se: 

 

“As ditas associações terão direito aos serviços gratuitos dos menores até a idade de 21 anos completos, e poderão alugar esses serviços, mas serão obrigadas:

1º A criar e tratar os mesmos menores;

2º A constituir para cada um deles um pecúlio, consistente na quota que para este fim for reservada nos respectivos estatutos;

3º A procurar-lhes, findo o tempo de serviço, apropriada colocação”.

 

Assim podemos afirmar que os juristas do Império do Brasil reconheciam as categorias familiares de escravizados, mas não consideravam que o ambiente familiar das mães de ventre livre constituísse a “apropriada colocação” para seus filhos nascidos ingênuos. Isso pode ter sido uma das questões que renovariam as pautas de lutas pelo fim definitivo da escravidão. Algo que tirava o sono de muitas “famílias escravas”, destacadamente aquelas constituídas por mães solteiras escravizadas com filhos menores. As que receberam a alforria com os recursos do Fundo de Emancipação de Escravos, em 1880, por certo ainda tiveram que lidar com outras arbitrariedades autorizadas pela lei.

Retrato de mulher com criança no colo, cerca de 1910 – Foto Vicenzo Pastores/ Instituto Moreira Salles. Imagem publicada no site “socialista morena” em 14 de agosto de 2018. Ilustrando o texto “Machado de Assis, o capitão do mato e o aborto”!

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao conteúdo previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

Ensino Fundamental: EF02HI08 (2º ano: Copilar histórias da família e/ou da comunidade registrada em diferentes fontes); EF08HI20 (8º ano: Identificar e relacionar aspectos das estruturas sociais da atualidade com os legados da escravidão no Brasil e discutir a importância das ações afirmativas); e EF09HI26 (9º ano: Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas (negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc.) com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas).

Ensino Médio: EM13CHS501 (Analisar os fundamentos da ética em diferentes culturas, tempos e espaços, identificando processos que contribuem para a formação de sujeitos éticos que valorizem a liberdade, a cooperação, a autonomia, o empreendedorismo, a convivência democrática e a solidariedade).

Assista ao vídeo da historiadora Lucimar Felisberto no Acervo Cultne: 

Lucimar Felisberto dos Santos

Doutora em História Social pela UFBA; professora de História das redes municipais de Duque de Caxias e Guapimirim; co-criadora e administradora do @Afrodiálogos; pesquisadora do Laboratório de Histórias das Experiências Religiosa da UFRJ. E-mail: lucimarfelisbertodossantos@gmail.com. Instagram: @lucimarfelis

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.
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