A pergunta que faço neste texto feito no Mês das Mulheres Negras é também um convite para seguirmos juntas e pelo legado de nossas Ialodês (termo em seu sentido político empregado por Jurema Werneck), contemporâneas e de antes, principalmente de Benguela, de Quariterê.
A pergunta-inspiração vem do reinado quilombola de Tereza de Benguela: por onde e como seguimos construindo rotas de vida?
Não é possível responder à pergunta sem pensar nas vivências de expropriação, negação, subordinação e desrespeito, recorrentes em nossas trajetórias e de nossas comunidades. Materialidades que nos demandam ainda mais frente à pandemia utilizada como tecnologia de genocídio.
Em meio à pandemia do coronavírus, o Brasil chegou a liderar mortes maternas por Covid-19 no mundo, com as mulheres negras expostas a riscos de morte duas vezes maior comparadas às mulheres brancas.
De acordo com os dados produzidos pelo Observatório Obstétrico Brasileiro Covid-19, até maio de 2021, as mortes maternas entre mulheres negras foi 77% superior às das brancas. O Brasil representa 75% das mortes maternas pela doença no mundo todo.
A morte como projeto vigente que recai sobre nós é tão pesada quanto a inadiável tarefa de luta. Inclusive para pautarmos a emergência de compreensão sobre como o controle da sexualidade, pelo Estado e pelo poder privado, bem como o histórico racista das hierarquias reprodutivas sobre a vida das mulheres negras, são eixos para violências, injustiças, iniquidades e indignidades.
Este processo resulta em genocídio, como nos casos das mortes de Alyne Pimentel, Rafaela dos Santos, Ingriane Barbosa, Kathlen Romeu e tantas outras de nós.
A crescente mortalidade materna expõe os mecanismos de instituições racistas e cisnormativas que aniquilam as vidas de mulheres e de pessoas negras (não binárias e homens trans) que gestam. Diante das quais nos movemos por Justiça reprodutiva.
As tarefas não são simples mas a pergunta feita inicialmente grita para não nos definirmos pelas iniquidades ou pelas tentativas de aniquilação. Não podemos nos limitar à compreensão de quem produz nossa morte. Retornando aos legados, penso que Tereza de Benguela se colocou em fuga não apenas pela constatação dos mecanismos de subordinação e do sofrimento, mas pela certeza que a definição de sua humanidade não cabia a quem lhe açoitava.
Sobre convocatórias, de ontem e de hoje, a pergunta-impulsionamento, inspirada na trajetória de Tereza de Benguela, ganhou ainda mais propulsão a partir do que Jurema Werneck e Lúcia Xavier me fizeram refletir neste julho de 2021: a necessidade de mudar o mundo é fundante da ação política de nós, mulheres negras, da confirmação dos nossos investimentos na humanidade.
A convocação dá ainda mais materialidade à importância de construção de rotas de vida ao nos chamar à responsabilidade não pelo sofrimento, mas pelo protagonismo de nossas lutas. Recobra-se a mensagem para não paralisarmos frente às tentativas de imposição do terror pelo poder racista, patriarcal e cisheteronormativo.
As convocatórias feitas por tantas mulheres negras, Ialodês de hoje, durante o mês de julho recuperam nossos propostos pactos civilizatórios, não inaugurados apenas em nós, mas consolidados na Carta de 2015 (7) e renovados na Carta das Mulheres Negras ao STF em 2020 . As cartas de 2015 e de 2020, para além da negativa ao padrão civilizatório ocidental, branco e colonial, nos impulsionam em base civilizatória diversa através do Bem-Viver, nossa Utopia, que propõe distribuição de Justiça para todes – nossa rota de vida.
Sim, somos as Mulheres do Fim do Mundo cantadas por Elza Soares. Contudo, não as da imagem distópica assinada por quem nos aponta a subordinação, o açoite e a morte. Cantamos (cantaremos) e lutamos (lutaremos) como protagonistas até o fim deste mundo ficcionado pelo poder, expropriação, acumulação e desumanização racista. Por nossa Utopia possível do Bem-Viver. A rota de nossa Marcha continua sendo guia. Sigamos!
Lia Manso
Coordenadora de projetos em Criola, advogada, pesquisadora e ativista em direitos humanos, raça e gênero
PerifaConnection, uma plataforma de disputa de narrativa das periferias, é feito por Raull Santiago, Wesley Teixeira, Salvino Oliveira, Jefferson Barbosa e Thuane Nascimento