Mulheres Negras e as Eleições Municipais de 2020

FONTEPor Valdenia Guimarães e Silva Menegon, enviado para o Portal Geledés

A discussão sobre a participação política das mulheres no Brasil remonta aos Oitocentos. Apesar de manifestações anteriores, foi só no final do século XIX que as primeiras atividades conjuntas passaram a ocorrer, de forma mais acentuada, atreladas ao movimento sufragista, com posicionamentos oriundos, especialmente, de mulheres da elite econômica da nascente república. Por outro lado, foi possível verificar também a movimentação de mulheres operárias, influenciadas pelo marxismo ou pelo anarquismo. Este primeiro momento foi até a década de 1930, quando as mulheres conquistaram o direito de votar e de serem votadas. Entre os anos de 1940 e 1950, essas discussões arrefeceram, voltando a florescer a partir de 1970, quando em meio à ditadura civil-militar, as mulheres criaram frentes de participação política, entre as quais se destacavam as organizações da sociedade civil e os partidos políticos. Os anos de 1980 foram marcados pela luta em prol da redemocratização do País e pelas discussões em torno da Assembleia Nacional Constituinte, quando houve uma intensa articulação de mulheres em defesa da cidadania feminina e a implementação de políticas públicas para as mulheres.

Os debates em torno da participação feminina na política representativa ganharam novo vulto na década de 1990, quando os movimentos de mulheres trouxeram como bandeira de luta a ampliação da participação das mulheres no âmbito dos cargos eletivos. O certo é que, apesar da movimentação em todo o período analisado, permanece no Brasil uma sub-representação política das mulheres. Esta discussão se torna ainda mais premente quando tratamos sobre a relação entre a política representativa e as mulheres negras. 

O que se tem observado é que não existe apenas o problema de gênero nas eleições brasileiras, mas um racismo que estrutura todo o processo eleitoral, impedindo muitas vezes a efetividade das candidaturas negras. As eleições municipais de 2020 no Brasil apresentaram um diferencial em relação aos pleitos anteriores. Os dados do Superior Tribunal Eleitoral (TSE) apontaram uma ampliação, mesmo que ainda tímida, da eleição de negros e negras nas disputas municipais, tanto para o Executivo quanto para o Legislativo. Também houve um crescimento da eleição de quilombolas, indígenas e de representantes da população LGBTQIA+.

De tal sorte, busco discutir neste texto a participação política das mulheres negras no pleito eleitoral de 2020, considerando a base racial que estrutura a sociedade brasileira. Compreendo que a sub-representação política das mulheres negras tem relação não apenas com as questões de gênero e classe, mas também com o racismo estrutural, o que as coloca em uma situação triplamente crítica de violência política. 

A eleição de Antonieta de Barros à deputada nas disputas de 1934 em Santa Catarina, tornando-a a primeira deputada negra do Brasil e a única até hoje naquele estado, ou a de Joana dos Santos Machado a vereadora em 1966, no município de Caxias, estado do Maranhão, poderia significar que as questões de raça não afetariam o processo eleitoral no Brasil. No entanto, o que se percebe é a permanência da sub-representação das mulheres negras nos espaços decisórios do País.  Além disso, a análise é dificultada pelo fato de que apenas a partir das eleições de 2014 a variável raça/cor foi adicionada aos registros do TSE. Deste modo, é possível averiguar que das 513 cadeiras existentes em 2021 na Câmara dos Deputados, 77 são ocupadas por mulheres, 26 a mais do que as eleitas em 2014. Em 2018 o número de mulheres negras eleitas subiu de 10 para 13, o que representa um percentual de 2,53% de mulheres negras neste espaço.

Os dados do TSE assinalaram que a proporção do número de candidatos que se declararam pardos e pretos nas eleições de 2020 foi de 50,04%, ultrapassando os 46,56% das eleições de 2018 e os 47,76% do pleito de 2016. Destes números, cerca de 215 mil candidaturas foram de pessoas pardas e 57 mil de pessoas pretas. Mesmo que de forma tímida, há que se comemorar o que as estatísticas apontam, já que pretos e pardos representam o grupo étnico racial mais expressivo do País. 

As informações divulgadas pelo TSE também apontaram que 44,7% das candidaturas negras (pretos e pardos) nas Eleições Municipais de 2020 tiveram êxito, sendo 1.730 para as prefeituras municipais e 25.960 para as câmaras municipais, o que equivale a 10% do número total de candidaturas registradas. Em 283 municípios brasileiros, 100% das câmaras municipais foram ocupadas por candidaturas autodeclaradas pretas ou pardas. Esse dado é relevante, mesmo que se tenha percebido candidatos que em outros pleitos haviam se autodeclarado brancos e nas eleições de 2020 se declararam pardos, algo que carece de maior pesquisa e punição quando comprovado. 

Uma das causas apontadas para o crescimento das candidaturas negras no país pode ter relação com a decisão tomada pelo Tribunal Superior Eleitoral sobre cotas para financiamento destas candidaturas. A consulta foi realizada pela deputada Benedita da Silva (do PT do Rio de Janeiro) e apoiada pelo Movimento Negro e de mulheres negras tais como a Coalizão Negra por Direitos, a União de Negros e Negras pela Igualdade (Unegro), o Instituto Marielle Franco, o Movimento Mulheres Negras Decidem, entre outras organizações, que questionaram o TSE sobre a distribuição do financiamento e do tempo de rádio e TV de forma proporcional ao número de candidaturas negras. O objetivo era garantir uma divisão mais igualitária dos recursos do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral, além de estimular candidaturas negras. Porém, analisando de maneira mais apurada as informações sobre as eleições de 2020 no que se refere a candidaturas de mulheres negras, o cenário apresentado não foi muito diferente do que ocorreu nas eleições de 2016.

No pleito de 2016, apenas 4,1% (691) das candidaturas às prefeituras eram de mulheres negras e destas somente 3,2% (180) foram eleitas. Em números absolutos isto indica que de 649 mulheres eleitas prefeitas, 10 eram negras. Mulheres negras representaram apenas 15,4% das candidaturas a vereadora (71.066), e destas, apenas 5% (2.870) foram eleitas. Em números absolutos isto significa dizer que naquele ano foram eleitos para as Câmaras Municipais brasileiras 57.419 vereadores. Desse total, 7.809 eram mulheres, o que representa 13,6%. Dentre as vereadoras eleitas em 2016, 36,7% eram negras (32,5% autodeclaradas como pardas e 4,21% como pretas). Em termos regionais, nas eleições de 2016, o Norte foi o que apresentou a mais forte presença de vereadoras negras: 67,6% do total de eleitas (60,3% pardas e 7,3% pretas). O Nordeste ficou em segundo, com 56% de vereadoras negras, seguido do Centro-Oeste (41,2%), do Sudeste (23,6%) e do Sul (4,3%). Nas eleições de 2020, o Norte manteve a primeira colocação de candidaturas de mulheres negras concorrendo aos cargos eletivos, com 76%, seguido da região Nordeste, com 68%.  Entre os estados, o Acre ficou com a maior proporção de mulheres negras candidatas. 

Apesar da aparente diversidade ocorrida nas eleições de 2020, a população autodeclarada parda não está presente em 18,45% nas casas legislativas municipais. Do mesmo modo, homens e mulheres pretos não estão presentes em 59,51% destes espaços. As estatísticas também indicam que 53% dos municípios brasileiros não têm mulheres negras com assento nas câmaras municipais na legislatura 2021-2024. No total, 84.418 mulheres negras foram candidatas ao legislativo municipal nas últimas eleições, porém somente 3.634 foram eleitas, representando 6% do total. 

Além dos dados analisados e das desigualdades apresentadas, acreditamos que um outro olhar deve ser ampliado considerando o fato de que as eleições de 2020 demarcaram uma maior articulação de mulheres negras para o processo eleitoral, inclusive destacando as experiências específicas das mulheres negras e periféricas. Um exemplo é dado pela pedagoga, professora, feminista, antirracista, ativista no combate à intolerância religiosa, Maria José da Silva, eleita vereadora em 2020 pelo Partido dos Trabalhadores no município de Cáceres no Mato Grosso. Assim como Benedita da Silva e Marielle Franco (duas grandes referências de mulheres negras na política representativa), a vereadora tem a trajetória fortemente vinculada à causa educacional, defesa dos direitos humanos e o enfrentamento à violência contra as mulheres. Além de Mazéh Silva, várias outras mulheres negras se lançaram na disputa eleitoral durante as últimas eleições e deixaram uma marca de diferenciação.

Candidata a vereadora Mazéh Silva, município de Cáceres/MT. Foto de Campanha, outubro de 2020. Fonte: acervo pessoal da candidata.

As campanhas eleitorais de mulheres negras não estavam apenas em locais tradicionais da política. Elas também fizeram uso das tecnologias digitais para a organização e articulação política dessas candidaturas. Exemplo destas iniciativas é o Movimento Eu Voto em Negra, uma campanha nacional pela representatividade política, aumentando a participação feminina e negra nos espaços de poder. A iniciativa, que atua em toda região Nordeste, é um projeto que visa estimular candidaturas de mulheres negras e se desenvolve a partir da articulação de organizações da sociedade civil tanto do Brasil quanto do exterior.

Um outro olhar sobre as eleições de 2020 e a participação política das mulheres negras aponta que o pleito apenas preparou a articulação deste segmento da sociedade brasileira para as próximas eleições. Como disse Marielle, “podemos ser diversas, mas não dispersas”. Este é o maior legado das eleições municipais de 2020: a enorme rede de articulação de mulheres negras que se apropriaram de espaços físicos e virtuais para a promoção de uma revolução que se estrutura na maternagem, na potencialização das suas comunidades e no afeto. Estas iniciativas que ocorreram em vários estados brasileiros podem apontar uma modificação nas próximas eleições, criando um maior espaço de debate sobre a participação das mulheres negras na arena eleitoral. 

Campanha Eu Voto em Negra. Fonte: www.euvotoemnegra.com.br.

Assista ao vídeo da historiadora Valdenia Menegon no Acervo Cultne sobre este artigo:

 Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):

Ensino Fundamental: EF09HI17 (9º ano: Identificar e analisar processos sociais, econômicos, culturais e políticos do Brasil a partir de 1946); EF09HI23 (9º ano: Identificar direitos civis, políticos e sociais expressos na Constituição de 1988 e relacioná-los à noção de cidadania e ao pacto da sociedade brasileira de combate a diversas formas de preconceito, como o racismo); EF09HI24 (9º ano: analisar as transformações políticas, econômicas, sociais e culturais de 1989 aos dias atuais, identificando questões prioritárias para a promoção da cidadania e dos valores democráticos); EF09HI25 (9º ano: Relacionar as transformações da sociedade brasileira aos protagonismos da sociedade civil após 1989).

Ensino Médio: EM13CHS602 (Identificar e caracterizar a presença do paternalismo, do autoritarismo e do populismo na política, na sociedade e nas culturas brasileira e latino-americana, em períodos ditatoriais e democráticos, relacionando-os com as formas de organização e de articulação das sociedades em defesa da autonomia, da liberdade, do diálogo e da promoção da democracia, da cidadania e dos direitos humanos na sociedade atual).


Valdenia Guimarães e Silva Menegon

Licenciada em História, Mestra em Políticas Públicas, Doutora em História. Professora SEDUC-MA; Diretora de Direitos Humanos e Formação Política da UNEGRO/Caxias; E-mail: valdeniasilvas@gmail.com; @valdeniamenegon 

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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