Mulheres Negras Fumageiras: lutas de trabalhadoras no Recôncavo Baiano

FONTEPor Rosana Falcão Lessa, enviado para o Portal Geledés

Era segunda-feira e a cidade de São Gonçalo dos Campos, no Recôncavo baiano, amanhecia movimentada. O trânsito era intenso nas ruas principais. Em frente aos trapiches, tropas descansavam de longas jornadas noturnas após ter despejado sobre a calçada a preciosa carga de nosso “curo foseo” (fumo). Ao lado dormiam os almocreves (condutores de besta de carga, carroça, arrocheiro) e os operários aguardavam a hora para recomeçar a faina anual da escolha de nosso principal produto de lavoura. Assim caracterizava o jornal A Verdade, em sua edição de fevereiro de 1947, o burburinho da cidade na temporada de beneficiamento do fumo.

Naquela localidade, próxima ao município de Cachoeira, uma multidão de operárias tomava conta das ruas com enormes trouxas de fumo na cabeça. O cotidiano das fumageiras deu identidade à região, uma rotina árdua de luta pela sobrevivência que mulheres inteligentes e vigorosas empreenderam diante das possibilidades de uma vida impactada pela escravidão e o racismo.

Dona Maria Alves, operária negra sangonçalense, com aproximadamente 83 anos de idade em 2009, explicava a sua rotina nos armazéns: “O serviço começava às sete da manhã, parava meio-dia para almoçar e voltava uma hora da tarde e ia até cinco. Às vezes tinha gente que saía para comer em casa e quem morava longe fazia sua merenda ali mesmo. Eu ficava no armazém mesmo, [porque] eu morava longe e vinha andando. Aqui naquele tempo não tinha estrada, era rodagem. Aí as mulheres que vinham dos lugares mais longe tinham que vir de madrugada para tá no serviço no horário. Vinha todo mundo a pé. Tinha o mestre que olhava tudo e controlava tudo lá no armazém e o contramestre era auxiliar do mestre que fiscalizava todo serviço, era muita gente trabalhando… Tinha tempos que era tanto trabalho que a gente trabalhava em turnão, que pegava das seis da manhã ao meio-dia, depois de uma hora da tarde até cinco horas e de seis horas da tarde até dez horas da noite. Aí tinha as trocas dos grupos”.

Como mulher negra, natural de São Gonçalo dos Campos, sempre percebi a necessidade de entender historicamente a cidade a partir da população negra que, com a sua força de trabalho, produziu a riqueza local. Uma vontade antiga, nutrida desde os tempos de criança entre as décadas de 1980 e 1990, quando esperava na porta de casa a passagem das trabalhadoras dos armazéns, que inundavam as ruas durante a semana, dando beleza e movimento às manhãs e às tardes do município. Sentada na porta de minha casa, meus olhos infantis e curiosos esperavam a passagem da última trabalhadora. Impossível não notá-las:  eram mulheres de voz altiva e sorriso largo. Carregavam enormes trouxas de fumo na cabeça, o que me inquietava e instigava a imaginar: o que elas faziam? Por que elas trabalhavam? Quem eram aquelas mulheres e para onde iam? Quais foram as lutas por dignidade que travaram ao longo de suas vidas? E o que seria dignidade para elas? 

Mulheres Fumageiras. Arte de Marcus Paulo de Oliveira, 2020. Fonte: Arquivo Pessoal.

Com o tempo, as trabalhadoras fumageiras foram sumindo gradativamente das ruas de São Gonçalo dos Campos. Mas permaneceram nas minhas lembranças, a ponto de se tornarem o centro do meu interesse como professora e pesquisadora de história. Essas inquietações aparecem no meu livro, Mulheres, Trabalho e Memória na Bahia: o Caso da Indústria Fumageira de São Gonçalo dos Campos, 1950-1980.

O padre André João Antonil, em Cultura e Opulência do Brasil, obra do início do século XVIII, já comentava a predominância da cultura fumageira nos Campos de Cachoeira, denominação de São Gonçalo dos Campos à época. A cultura fumageira predominou na economia local do período colonial até o final da década de 1950, quando seu cultivo começou a entrar em declínio. Intempéries climáticas e diminuição de investimentos governamentais explicam a desestruturação da produção. Registros econômicos guardados no Arquivo Público da Bahia (APEB) apontam o município como o maior produtor de fumo do estado. Tamanha era a qualidade do fumo sangonçalense que ganhou marca própria, “Exclusivo São Gonçalo”.

Foto aérea do município de São Gonçalo dos Campos. Fonte: Prefeitura Municipal de São Gonçalo dos Campos.

As vivências das fumageiras aparecem em suas próprias lembranças. De fato, o trabalho feminino foi a base de sustentação econômica do município e delineou, historicamente, os modos de viver em liberdade durante o período escravista e do pós-abolição. Os campos fumageiros tornaram-se campos de resistência, atraindo a população livre e liberta, incluindo as mulheres – embora essas tivessem pouca visibilidade, uma marca de sociedade pautada em valores machistas, em que a subordinação econômica e social feminina era naturalizada. Mesmo sendo produtoras da riqueza material da cidade e sustentáculo das famílias, a participação feminina negra no trabalho era desvalorizada, talvez como uma maneira de legitimar a exploração no interior das famílias.

Charuteira em seu ofício, 1987. Foto: Cristina Isidorio. Acervo particular.

Em São Gonçalo dos Campos, como era comum em todas as cidades brasileiras, mulheres operárias, em sua maioria negras e pobres, recebiam salários baixos, não tinham regime de trabalho regular. O trabalho dessas mulheres negras era menos valorizado do que aquele exercido por homens. No caso do trabalho na indústria fumageira mais especificamente, as memórias de D. Antonia, uma operária dos armazéns da cidade, têm grande relevância ao oferecer detalhes sobre essa rotina. Segundo ela, “os homens carregam fardos e imprensam o fumo, nós mulheres íamos destalar o fumo, lavar os galpão e costurar os sacos e tudo para o tratamento das folhas, entende? O salário era diferente”. No senso comum, o trabalho dessas mulheres era mais leve, mesmo quando isso não se confirmava na prática. O trabalho dos homens, por se resumir às atividades que exigiam a força física, era compreendido por todos, inclusive pelas mulheres, como mais importante. Os cargos de chefia como gerentes, mestres e contramestres eram todos ocupados por homens.

No livro que escrevi, demonstrei que as mulheres fumageiras estavam atentas à exploração enquanto trabalhadoras, bem como sabiam de sua relevância na geração de riqueza da qual as elites locais se beneficiavam. É perceptível a reação dessas mulheres contra a exploração do trabalho utilizando de táticas particulares para compensar os baixos salários. 

Conforme relata um mestre de armazém que preferiu não ser identificado, algumas mulheres levavam trouxas de fumo para destalar em casa e retiravam folhas para ganhos próprios, confeccionando charutos: “Elas tinham que pesar o fumo na saída e depois que chegavam para ver se o peso era o normal para a trouxa que elas tinham levado, mas tinha mulher que tirava tanto fumo e completava as trouxas com areia para enrolar o povo…”. Ele também informou que, inicialmente: “as mulheres levavam uma ou duas trouxas de fumo para serem destaladas em casa e retornavam essas trouxas para o armazém no dia seguinte. Com o passar dos anos ninguém queria carregar mais trouxas na cabeça ou na mão, quem tinha carroça levava várias trouxas de fumo e retornava para o armazém no fim da semana, quem não tinha carroça alugava. Não sei se esse caso era vergonha de carregar as trouxas ou vontade de levar mais trabalho para casa. Muitas mulheres tiravam as folhas mais bonitas e vendiam por conta própria e para manter o peso inicial, elas molhavam porque a água pesa. Então, as seguindo ordens dos donos lá do armazém as trouxas mais molhadas eram cortadas, as pessoas não recebiam por ela. Uma vez, tinha uma funcionária que levava muitas trouxas para o pai que era cego destalar e a mãe que tinha uma deficiência na perna realizarem o trabalho em casa e ganhar um dinheirinho extra. Certo dia essa funcionária ficou doente e eu fui visitá-la e o pai dela que era cego não sabia de quem se tratava… e menina, ele ficava apalpando as folhas quando via que eram as melhores e maiores ele separava e colocava separadas das demais. Foi uma situação constrangedora, mas me mantive observando!”

Numa ata de 1960, do Sindicato da Indústria, há uma discussão e reclamação de algumas mulheres em relação ao balanceiro, funcionário que pesava fardos produzidos ao final do expediente para mensurar a produção diária de cada operária e as trouxas de fumo quando eram levadas para casa. Quando retornavam no dia seguinte com o produto beneficiado, havia uma nova pesagem para conferir se o peso era condizente com a referência inicial. As mulheres reclamavam que o balanceiro registrava o peso que lhe desse na cabeça, não o que a balança mostrava. Coube aos responsáveis do sindicato abrir uma sindicância para apurar as denúncias das trabalhadoras prejudicadas. 

A partir das histórias de vida cotidiana no mundo do trabalho dessas mulheres negras de São Gonçalo dos Campos, é possível conhecer suas resistências, estratégicas e saberes. A exemplo do que demonstrou Patricia Hill Collins, em seu livro Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento, o comportamento cotidiano das mulheres negras nos papéis de mães, em sua participação nas igrejas, seu apoio mútuo no seio de redes de mulheres negras, em sua expressão criativa, em sua autodefinição e autoavaliação, no encorajamento a outras na rejeição à objetificação, é uma forma de ativismo.

Além das reações individuais houve ainda iniciativas coletivas. A criação do Sindicato dos Trabalhadores do Fumo, em 1959, foi a que mais deu visibilidade à atuação das mulheres como mão de obra ostensiva no município. As discussões promovidas pela agremiação revelam as formas precárias e cruéis das relações de trabalho. No dia 26 de maio de 1960, consta que Dona Maria Adélia questionou uma resolução do presidente do sindicato. Ele informara que ela teria o direito de receber o salário de acordo com a sua produção. Então ela e algumas companheiras declararam ao seu empregador que só receberiam o pagamento com base no salário mínimo. Ele negou-se a pagar, como de fato não pagou. Dona Maria e suas companheiras deixaram o dinheiro no escritório do armazém numa sexta-feira como forma de registrar a insatisfação. Sem dinheiro para comprar mantimentos, as mulheres passaram fome até a segunda-feira. O gerente deu um ultimato, dizendo que não pagaria quantia maior do que 70 cruzeiros por diária. Sem muitas opções, se sujeitaram a receber a quantia. Quando Dona Maria perguntou por que algumas de suas companheiras, que se sentavam na escolha junto aos homens e davam a mesma produção na escolha do fumo, recebiam 70 Cr$ enquanto os homens ganhavam 120 Cr$, ouviu a seguinte resposta: “era essa quantia para mulher e quem não quisesse fosse embora que eu pago o salário, que daria o aviso prévio e de maneira que se tornou dizendo à companheira Maria Luiza Cerqueira que os prepostos da firma não autorizavam mais esta conversa ali sob pena de mandar todas ir embora dali sem direito nenhum”.

Esses e outros relatos chamam atenção para os caminhos pelos quais essas trabalhadoras desenvolviam estratégias para compensar a exploração do trabalho. Vida e resistência possuíam significado muito próximo para essas mulheres negras fumageiras. Estas experiências são fundamentais para entendermos o protagonismo das mulheres negras na história de São Gonçalo dos Campos e na história do Brasil. Pessoas que se viam como plenamente humanas, como sujeitos, como ativistas. 

Assista ao vídeo da historiadora Rosana Falcão Lessa no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): 

Ensino Fundamental: EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); e EF09HI04 (9o ano: Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil).

Ensino Médio: (EM13CHS102) Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes conceituais (etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade, cooperativismo/desenvolvimento etc.), avaliando criticamente seu significado histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos; (EM13CHS104) Analisar objetos e vestígios da cultura material e imaterial de modo a identificar conhecimentos, valores, crenças e práticas que caracterizam a identidade e a diversidade cultural de diferentes sociedades inseridas no tempo e no espaço; (EM13CHS402) Analisar e comparar indicadores de emprego, trabalho e renda em diferentes espaços, escalas e tempos, associando-os a processos de estratificação e desigualdade socioeconômica.


Rosana Falcão Lessa

Doutoranda em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), mestra em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS); E-mail: lessarosana05@gmail.com; Instagram: @rosanafalcaolessa

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

-+=
Sair da versão mobile