Mulheres negras, política e cultura do cancelamento no Brasil republicano

FONTEPor Iracélli da Cruz Alves, enviado para o Portal Geledés
Arquivo Pessoal

Em 23 de agosto de 1946, o jornal baiano O Momento, vinculado ao então Partido Comunista do Brasil (PCB), estampava em sua segunda página uma matéria sobre o protagonismo da líder sindical Luiza Matos na região do Recôncavo Baiano. De acordo com a reportagem, ela liderou a criação do sindicado dos trabalhadores na Indústria do Fumo em São Félix, fundado em 19 de novembro de 1935. Entre 1937 e 1942, a sindicalista assumiu a presidência do sindicado e enfrentou muitas perseguições da classe patronal. Na época, ela trabalhava na fábrica Dannemann. Em decorrência de suas atividades políticas, foi demitida. Forjaram uma arapuca e acusaram-na de roubo para justificar a demissão. Ela buscou a justiça, provou sua inocência e foi reintegrada, mas não voltou à mesma indústria. Foi trabalhar na fábrica Suerdiek, de onde também foi demitida e readmitida após contendas envolvendo perseguições dos patrões e inquéritos policiais. 

Reportagem sobre Luiza Mattos em O Momento, Salvador, 23 de agosto de 1946, p. 2. Fonte: Biblioteca Central do Estado da Bahia.

Na mesma região, despontou na política o nome de Bernadete Santos, que, assim como Luiza Matos, era operária da zona fumageira. Conforme demonstrei em minha dissertação de mestrado, Bernadete Santos morava e trabalhava em Cachoeira. Era filiada ao PCB e em 1947 se candidatou a deputada estadual na Bahia. Foi a mais votada entre as mulheres candidatas pelo partido, apesar do baixíssimo investimento em sua campanha. Ela pouco apareceu nas páginas do principal periódico do partido no estado, o jornal O Momento, que dava mais espaço aos candidatos homens. Entre as mulheres candidatas, a presença de Bernadete Santos foi a menos registrada.

Notas sobre Bernadete Santos em O Momento, Salvador, 16 de janeiro de 1947, p. 4; e 19 de janeiro de 1947, p. 4. Fonte: Biblioteca Central da Bahia.

Saindo da Bahia e entrando no eixo Rio-São Paulo, deparamos com o nome de Maria Benedita Cruz, que era empregada doméstica e militante do PCB. Em 1947, candidatou-se a vereadora na cidade de Santos, São Paulo. Lourdes Benaim foi outra empregada doméstica comunista. Em 1954, no IV Congresso do PCB, foi eleita para compor o Comitê Central (CC) do partido, órgão máximo da direção. No mesmo ano, Olga Maranhão, empregada doméstica do Rio de Janeiro, também compôs o CC.

Fotografia de Maria Benedita Cruz em Momento Feminino, Rio de Janeiro, 24 de outubro de 1947, p. 14. Fonte: Hemeroteca digital da Biblioteca Nacional.

O que essas mulheres têm em comum? Todas eram comunistas, trabalhadoras e muito provavelmente negras, como é perceptível nas poucas imagens que até hoje encontrei. Além disso, não podemos esquecer que a classe trabalhadora brasileira tem sido majoritariamente negra, o que aumenta a probabilidade de essa pressuposição fazer sentido para os casos em que não acessei registros fotográficos. Outro ponto em comum em suas trajetórias é que todas participaram ativamente da vida política do país em meados do século XX, atuando significativamente no partido no qual escolheram militar. No entanto, foram praticamente esquecidas (ou silenciadas?) tanto pela historiografia política do Brasil quanto pelas narrativas históricas sobre o PCB. Os nomes delas, na maioria das vezes, nem sequer são citados. Seria interessantíssimo expor outras informações sobre suas vidas, mas ainda faltam dados mais consistentes. Disponho apenas de alguns elementos, baseados em uma pesquisa recente que fiz no doutorado. Na tese intitulada Feminismo entre ondas: mulheres, PCB e política no Brasil, analisei a atuação feminista de mulheres ligadas ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) entre as décadas de 1940 e 1970. Durante a pesquisa, fiquei impressionada com os diversos nomes de mulheres comunistas canceladas pela história política do país e, mais especificamente, por memorialistas e historiadores do PCB. 

Algumas mulheres brancas engajadas na luta feminista, como Jacinta Passos, Alina Paim e Nice Figueiredo, somem da maioria das narrativas. Se elas – que à época ocuparam espaços de relativo poder e visibilidade em função da raça – foram invisibilizadas, as mulheres negras foram postas na margem da margem. Na pesquisa, não consegui dar conta de tantas trajetórias importantes, mas aqui não poderia deixar de registrar nome e sobrenome de mulheres como Luiza Matos, Bernadete Santos, Maria Benedita Cruz, Lourdes Benaim e Olga Maranhão. Acredito que as e os estudantes da Educação Básica precisam se enxergar nas narrativas históricas. Por isso, é importante destacar que mulheres negras como eu e como diversas estudantes e professoras das escolas públicas e particulares são sujeitas da história.

O que proponho nestas breves linhas é um ensaio inicial que faz parte de um movimento cada vez mais amplo promovido, sobretudo, por historiadoras negras e historiadores negros que, ao longo do tempo, vêm quebrando o “paradigma da ausência”, para usar uma expressão do historiador Álvaro Nascimento. Uma busca na Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros desvenda uma quantidade enorme de pesquisas sobre diversos e importantíssimos temas e trajetórias que por muito tempo foram negligenciados pela historiografia. E não podemos deixar de perguntar: por que, por tantos anos, tantas histórias deixaram de ser contadas? O que o racismo, atrelado ao sexismo, tem a nos dizer sobre silêncios? E o que isso tem a ver com as fragilidades da democracia no Brasil?

Essas questões podem nos ajudar a qualificar ou reposicionar os debates muito presente na atualidade sobre a chamada “cultura do cancelamento”. A prática, comum nas redes sociais, tem sido utilizada para colocar em suspeição o direito de questionar por parte de grupos que recebem o rótulo de “identitários” – leiam-se antirracistas, feministas e LGBTQIA+. Na polêmica, geralmente, os argumentos mais usados sobre as supostas vítimas é de que a cultura do cancelamento fragiliza a democracia. Mas pode o cancelado ou a cancelada cancelar? Precisaríamos de muitas linhas para demonstrar todas as formas – rudes e sutis – de cancelamento empreendidas pela branquitude. Mas análises instigantes sobre medo branco e lugar de fala vem circulando na Web. É preciso explicar o óbvio para quem está muito acostumado a falar sobre tudo e a ouvir seus pares, mas ainda não se educou para escutar quem foi posicionado como o “outro”.

Pensando o perfil de quem vem sofrendo com o cancelamento ao longo da história – sendo algumas dessas pessoas apresentados aqui –, a pergunta sobre quem tem o poder de cancelar logo se impõe. Confesso que a resposta parece óbvia: quem sempre deteve e vem usando o poder do “cale-se” é a branquitude, sobretudo masculina e heteronormativa. Para além da História, o silenciamento de pessoas negras, principalmente quando mulheres, está presente em outros campos do conhecimento. 

No livro Literatura brasileira contemporânea: um território contestado, publicado em 2012, Regina Dalcastàgne registrou um “mapa de ausências” nos romances brasileiros. Ao estudar a produção literária no Brasil entre 1990 e 2004, a autora percebeu a ausência de dois grandes grupos: pobres e negros. A equação de gênero também apresentou resultados desfavoráveis para as mulheres, que publicam bem menos que os homens. Eles são responsáveis por 72,7% das publicações. No que diz respeito ao recorte racial, são brancos 93,9% dos autores e autoras que publicam em editoras famosas! Além disso, em grande medida, aqueles que participam do campo literário já estão presentes também em outros espaços privilegiados de produção de discurso, notadamente na imprensa e no ambiente acadêmico. Esses dados dizem muito sobre o perfil do escritor brasileiro hegemônico: ele é homem, branco, aproximando-se ou já entrando na meia idade, com diploma superior, morando no eixo Rio-São Paulo. 

Isso não significa dizer que mulheres e homens negros não produziram e não abriram seus próprios caminhos. Apesar da hegemonia branca, houve uma série de publicações de pessoas negras, homens em sua maioria, muitas vezes em editoras ou projetos editoriais próprios, muitas vezes com parcos recursos. Uma busca no Literafro: o portal da literatura Afro-brasileira revela uma quantidade significativa de escritoras e escritores negros que criaram seus próprios espaços de publicação. Portanto, em que pesem os cancelamentos, brotaram muitas evaristos e carolinas. Porque, como nos ensina as inspiradoras palavras de Jurema Werneck: “A gente é mulher negra, não mulher e negra. É uma experiência compacta, inteira e singular, que traz vários reflexos em nossa vida […]. Mas não é só coisa ruim. Somos herdeiras de mulheres que lutaram e construíram a própria força. Temos como referência outras mulheres negras, que nos ensinam como somos capazes de resistir”.

Mas voltando para os cancelamentos, além dos campos da História e da Literatura, poderíamos, sem muito esforço, localizar uma série de ausências: no cinema, na TV, no teatro, nos jornais e revistas de grande circulação. Sem falar nas presenças incômodas, espaços que, sem dúvida, ninguém brigaria para ocupar. São os negros e negras que mais morrem vítimas de Covid-19, que mais são afetados pelo desemprego, principalmente quando mulheres – taxas que vêm crescendo assustadoramente em tempos de pandemia. É a juventude negra que mais morre vítima da violência letal, são as mulheres negras as maiores vítimas de feminicídio. Estes são só alguns exemplos brutais do apagamento concreto de humanidades.

Se as gentes negras são silenciadas de diversas formas e em diferentes níveis, o que dizer sobre as pessoas indígenas? Aqui, a produção de violentos silêncios e aniquilamentos também é gritante. E quais os efeitos desse cancelamento? Quais suas consequências para a consolidação da democracia? O grupo social da branquitude parece pouco disposto a refletir – profundamente e sem ansiar por anistias – sobre desigualdades raciais e lugares de poder e privilégio, que tornam a democracia brasileira sempre frágil, porque quase nunca verdadeiramente inclusiva. Muito acostumados a falar, a decidir e a monopolizar os espaços de poder, os identitários brancos estão empenhados mesmo em defender seus privilégios. Não por acaso, tem sido frequente o esforço da branquitude “democrática” em jogar nas costas dos “outros” a responsabilidade sobre as fragilidades da democracia no Brasil. 

Se a branquitude geralmente não se racializa, ela não se pensa como um grupo “identitário”. Reivindicando-se universal, faz malabarismos impressionantes para se eximir de suas responsabilidades políticas e sociais no processo histórico de exclusão e aniquilamento de pessoas não brancas. Quem sempre teve o poder de veto, hoje atribui este lugar aos “outros”. Num exercício intelectual desonesto, porque não fundamentado em pesquisas e análise densa de dados, rotula de “fascistas identitários” grupos sociais que vêm sendo historicamente cancelados. Grupos que, ao longo da história, precisam constantemente lutar pela garantia dos direitos humanos mais básicos, inclusive o direito de respirar! “É que Narciso acha feio o que não é espelho”, já dizia Caetano Veloso. Mas nossos passos vêm de longe! E o grupo identitário branco seguirá sendo questionado por nós para que privilégios restritos à branquitude possam um dia se tornar direitos para todo mundo. Parafraseando José Carlos Capinam e Roberto Mendes, aprendemos a ler e seguiremos ensinando às nossas camaradas. E com poesia…

 

Assista ao vídeo da historiadora Iracélli da Cruz Alves no Acervo Cultne sobre este artigo:


Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao conteúdo previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

Ensino Fundamental: EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); EF09HI04 (9º ano: Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil) e EF09HI26 (9º ano: Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas – negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc. – com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas).

Ensino Médio: EM13CHS101 (Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais); EM13CHS103 (Elaborar hipóteses, selecionar evidências e compor argumentos relativos a processos políticos, econômicos, sociais, ambientais, culturais e epistemológicos, com base na sistematização de dados e informações de diversas naturezas – expressões artísticas, textos filosóficos e sociológicos, documentos históricos e geográficos, gráficos, mapas, tabelas, tradições orais, entre outros); EM13CHS502 (Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais); EM13CHS503 (Identificar diversas formas de violência (física, simbólica, psicológica etc.), suas principais vítimas, suas causas sociais, psicológicas e afetivas, seus significados e usos políticos, sociais e culturais, discutindo e avaliando mecanismos para combatê-las, com base em argumentos éticos); EM13CHS504 (Analisar e avaliar os impasses ético-políticos decorrentes das transformações culturais, sociais, históricas, científicas e tecnológicas no mundo contemporâneo e seus desdobramentos nas atitudes e nos valores de indivíduos, grupos sociais, sociedades e culturas).

Iracélli da Cruz Alves

Doutora em História Social pela UFF; E-mail: iracelli_alves@yahoo.com.br; Instagram: @iracelli.alves

 

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 
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