Mulheres negras romperam o paradigma da enfermeira padrão no início do século 20, revela pesquisa

FONTEPor Jacqueline Boechat
Solenidade em comemoração da Semana da Enfermeira na Praça Cruz Vermelha, em 1960, no Rio de Janeiro. (Fonte: Agência Nacional, Arquivo Nacional)

Embalado pelas invenções e novidades do final do século anterior, o século 20 trouxe ares de modernidade. Logo em suas primeiras décadas, transformações no cenário político, artístico, econômico e cultural, ampliadas pelo surgimento da comunicação de massa, alteraram o cenário mundial. Nesse período, o Brasil também passava por transformações, tanto na política e economia, como também no campo social, como a aceleração do processo de urbanização, alterações de hábitos e costumes e o término oficial da escravidão.

Na primeira metade do século 20 também ocorreu o processo de institucionalização da enfermagem profissional, que de um lado, procurava se afirmar como profissão de elite, e de outro, se configurava em uma oportunidade de mobilidade social para mulheres negras e mestiças. Essa aparente contradição é uma das primeiras conclusões do pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz (Fiocruz), Luiz Otávio Ferreira, em seu projeto Enfermagem e raça: biografia coletiva de mulheres negras e suas trajetórias em escolas de enfermagem no Brasil (1920-1960), contemplado em 2016 pelo Concurso de Pesquisa Negras e Negros nas Ciências, promovido pela Fundação Carlos Chagas com o apoio da Fundação Ford.

O projeto tem o objetivo de estudar como a questão de raça influenciou a formulação e implantação de políticas públicas de saúde e educação. Para isso, se propõe a analisar os mecanismos de inclusão e exclusão de mulheres negras e pardas no corpo de estudantes de três escolas de enfermagem: Anna Nery, Carlos Chagas e Rachel Haddock Lobo, utilizando a prosoprografia, uma biogragia coletiva das mulheres que tentaram ou se profissionalizaram como enfermeiras. O estudo tem como base informações extraídas de acervos dos centros de documentação e memória mantidos por estas escolas: “São dossiês formados pelos registros escolares que acompanham a percurso das estudantes desde o ingresso até a conclusão ou exclusão do curso de enfermagem”, explica Ferreira.

Após analisar os 934 prontuários das três escolas, a pesquisa chegou a seguinte distribuição racial exclusivamente feminina: alunas brancas (76%) e alunas não-brancas ( 23%), considerando não brancas ou negras as alunas que se autodeclaravam pretas (3%), pardas (10,5%) e morenas (9,5%). “Os documentos mostraram que a adesão de mulheres de classe média, brancas e com escolaridade secundária à profissão de enfermeira ficou abaixo das expectativas”, ressalta Ferreira. Para o historiador, esse fator contribuiu para a entrada de alunas negras e pardas: “A necessidade de aumentar substancialmente o contingente de profissionais de enfermagem nos serviços públicos de saúde favoreceu a composição social e racial mais heterogênea das escolas de enfermagem”, afirma.

Fichas de três alunas. (Fonte: Arquivo da Escola de Enfermagem Anna Nery.)

A enfermeira padrão

A formação de enfermeiras profissionais foi um dos principais objetivos da política de saúde pública implantada no Brasil a partir da década de 1920. A transformação da situação sanitária do país e melhoria das condições de saúde da população dependeriam da criação de um contingente de enfermeiras profissionais para serem implementadas. Uma das medidas para atender essa necessidade foi o acordo de cooperação firmado entre o Departamento Nacional de Saúde, então dirigido pelo cientista Carlos Chagas, e a Fundação Rockefeller, que trouxe ao Brasil a missão comandada pela enfermeira norte-americana Ethel Parsons, responsável pela criação da escola de enfermagem Anna Nery.

Até a década de 1920, a enfermagem não era uma profissão, mas um ofício principalmente doméstico, prestado por homens e mulheres de classe mais baixas e escravos. A primeira iniciativa a oferecer formação técnico-científica para a profissão foi a escola Anna Nery, que se tornou padrão para as demais escolas de enfermagem a partir de 1930. A escola estabelecia critérios rígidos que acabavam por dar viés à seleção: “Essas exigências privilegiavam um determinado grupo de moças da classe média, urbana, branca e com educação secundária”, pontua o pesquisador. Ao lado do estigma social e cultural do próprio serviço, esses critérios acabaram por se tornar entraves à expansão da profissão, levando a um déficit de profissionais e abrindo uma janela para a entrada de mulheres de outras raças e características socioculturais.

A pesquisa mostrou também que a discriminação racial foi uma prática institucional informal: era aceitável que a enfermeira padrão fosse pobre, mas não que fosse negra. Para chegar a essa conclusão, o estudo lançou mão de outras variáveis além da raça autodeclarada, como posição de classe por meio da ocupação do pai, matérias jornalísticas da época e correspondências pessoais. As seleções levavam em conta o conhecimento teórico, a prática, e até mesmo o comportamento das alunas: “Havia rumores de que as candidatas não brancas eram preteridas, mas só conseguimos ver isso explicitamente na correspondência trocada entre uma recrutadora e a direção de uma das escolas de enfermagem”, contou o pesquisador.

A diversidade racial só começou a se fazer sentir de forma intensiva a partir das décadas de 1940 e 1950, o que coincidiu com o momento de crise, quando o governo percebeu que existia um déficit de enfermeiros formados. Apesar disso, Ferreira argumenta que a profissão era uma possibilidade de mobilidade social, considerando que o acesso ao ensino de nível superior era extremamente elitizado nesta época e que a presença de estudantes pobres e não-brancos e sobretudo de mulheres em faculdades constituía uma rara exceção: “O fato de 30% de enfermeiras não-brancas terem conseguido se diplomar nas escolas estudadas é um sinal de mobilidade social para grupos raciais discriminados e também prova do protagonismo dessas mulheres que conseguiram furar o sistema”, conclui.

Veja os artigos que foram desenvolvidos a partir da pesquisa:

FERREIRA, Luiz Otávio; AZEVEDO, Nara. Origem social e racial e a formação de enfermeiras profissionais no Brasil (1930-1960). Revista ABPN, v. 11, p. 231-251, 2019.

FERREIRA, LUIZ OTÁVIO; SALLES, RENATA BROTTO. A origem social da enfermeira padrão: o recrutamento e a imagem pública da enfermeira no Brasil, 1920-1960. NUEVO MUNDO-MUNDOS NUEVOS, 2019. https://journals.openedition.org/nuevomundo/77966

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