Mulheres negras são hoje maior grupo nas universidades públicas do país

Avanço ocorreu junto com ações afirmativas; vulnerabilidade de meninos negros ajuda a explicar fenômeno

FONTEFolha de São paulo, por Angela Pinho
A partir da esq., Danielle Rosa, Stephanie Marinho, Larissa Rabelo, Bruna Vieira e Larissa Alexandre, alunas da Faculdade de Medicina da USP - Karime Xavier/Folhapress

Discriminadas no mercado de trabalho, as mulheres negras tiveram uma série de avanços educacionais e são hoje o grupo mais numeroso das instituições de ensino superior públicas, mostram levantamentos recentes.

Análise dos dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua Anual feita pelos economistas Ana Luiza Matos de Oliveira, professora da Flacso Brasil, e Arthur Welle, doutorando na Unicamp, mostra que elas eram 27% dos estudantes do ensino superior público em 2019, ano da edição da pesquisa com divulgação mais recente.

Foram consideradas no cáclulo as mulheres autodeclaradas pretas e pardas.

Em seguida, em ordem de participação, vinham as mulheres e homens brancos, com 25% cada um, e, por fim, os homens negros, com 23%.

O retrato representa uma mudança significativa em relação a 2001. Naquele ano, a Pnad mostrava que as mulheres negras eram o terceiro maior grupo, representando 19% no total de universitários de instituições públicas, bem atrás das mulheres brancas (38%) e dos homens brancos (30%) e à frente apenas dos homens negros (13%).

Também com dados da Pnad Contínua, trabalho de Tatiana Dias Silva, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), publicado no ano passado, mostrou que, considerando apenas os alunos ingressantes, mulheres negras já eram em 2017 o maior grupo também na soma do ensino superior público com o privado, respondendo por uma fatia de 29,3%.

As mulheres negras representam atualmente 28% da população brasileira.

Como a Pnad é amostral, esperava-se que as conclusões fossem corroboradas pelo Censo, também do IBGE, que acabou sendo adiado por causa da pandemia e de questões orçamentárias.

Mas um terceiro levantamento indica cenário semelhante de participação das mulheres negras. Trata-se da pesquisa de perfil socioeconômico dos graduandos das universidades federais realizada pela Andifes (associação dos reitores das federais), com dados de 2018.

Com uma amostra de 35% do conjunto total de estudantes, ela também mostra as mulheres negras como grupo mais numeroso nessas instituições, respondendo por uma parcela de 28,6%.

Para Tatiana, do Ipea, a hipótese mais provável para explicar o resultado é o efeito das ações afirmativas, em um contexto de maior escolarização das mulheres. Desde os anos 1990 elas têm melhores indicadores de conclusão escolar.

Com isso, tendem a se beneficiar mais da reserva de vagas em universidades públicas.

Ana Luiza, da Flacso, chama a atenção ainda para o atual contexto de crise econômica, que leva jovens negros e pobres a adiar os estudos, ou mesmo desistir deles, para trabalhar.

Mas há outras questões além do ingresso no mercado de trabalho que podem explicar a maior dificuldade dos meninos negros de se beneficiar das políticas de ações afirmativas. Os papéis de gênero e as expectativas sociais são algumas delas.

Em seu mestrado e doutorado na Faculdade de Educação da USP, Cinthia Toledo estudou a influência de gênero, raça e desempenho escolar entre alunos da periferia de São Paulo.

Ela observou que meninos negros tendiam a ser excluídos pelas demais crianças das interações em sala de aula. E, embora eles pudessem fazer amigos no futebol, por exemplo, tinham dificuldade de levar essas amizades para a sala de aula.

Isso porque a masculinidade negra tinha uma forte associação com a corporalidade, explica ela.

Tais estereótipos ligados a raça e gênero se repetem em outras etapas da formação.

Na Faculdade de Medicina da USP, o coletivo de estudantes negros, que debate e pauta questões raciais, tem predominância feminina, observa Larissa Alexandre, uma de suas integrantes. É muito comum homens negros irem direto para outras entidades estudantis, como a atlética, diz.

A faculdade, que abriga um dos cursos mais concorridos do Brasil, ainda tem maioria branca, mas ganhou nova cor recentemente com a adoção de reserva de vagas. E cada jovem negra que entra incentiva outras a fazer o mesmo, dizem as alunas.

Estudante de fonoaudiologia, Larissa Rabelo conta que, após um episódio de racismo, havia desanimado de entrar na USP, mas se motivou ao conhecer, ainda no cursinho, sua xará da medicina.

“O simples fato de a gente existir é algo que estimula as pessoas”, diz Larissa Alexandre.

Isso não significa que a questão da representatividade esteja resolvida. Pelo contrário, ela é sentida em diferentes aspectos da vida universitária.

Stephanie Marinho, 28, também aluna da medicina, não deixa de notar que todos os quadros da faculdade retratam homens brancos. Bruna Vieira, da terapia ocupacional, conta que sentiu muitos olhares sobre si toda vez que frequentou a instituição.

Pós-graduanda, a biomédica Danielle Rosa pontua que meninos negros têm uma vulnerabilidade particular. “Eles morrem antes de ter chance de cursar faculdade.”

A frase descreve uma experiência de vida para Julia Angel de Souza, estudante de ciências sociais da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e moradora do complexo do Chapadão, no Rio.

Com apoio da família, especialmente das mulheres, ela trabalha, começou outras duas graduações e ainda cuida da filha de dois anos. Mas de seus amigos pretos da infância, só mantém contato com dois meninos; muitos morreram, conta.

“A gente sofre com feminicidio racista e com a rotina de trabalho e filhos, mas os homens negros estão morrendo”, diz.

Assim como Julia, Heloisa Chagas da Silva, 25, aluna da Universidade Federal de Grande Dourados (MS), teve acesso a informações sobre políticas de ingresso e permanência na universidade no cursinho popular no qual estudaram, o Educafro.

Iniciativas como essa têm suprido a falta de redes de contato dos universitários que são os primeiros de suas famílias a cursar o ensino superior público.

Apesar das conquistas na educação, ainda é preciso avançar em outras dimensões. Pesquisa recente do Insper mostra que, mesmo entre os que cursaram o ensino superior público, um homem branco chega a ganhar em média quase 160% a mais do que uma mulher negra.

Resta ver como serão recebidas no mercado de trabalho as estudantes negras que hoje escrevem um novo capítulo na história da universidade pública brasileira.

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