Mulheres negras se unem para cuidar da saúde mental: ‘Ser negra é viver em sofrimento psíquico’

“As trajetórias de vida, assim como as trajetórias de cuidado, precisam ser diversas, da mesma forma que somos”

Tempos de liquidez pedem análises minuciosas sobre os fatos. No caso do Brasil, é inviável entender a constituição social vigente sem compreender os obstáculos enfrentados pelas mulheres negras.

Por  Kauê Vieira, do Hypeness

Elas representam metade do contingente feminino, cerca de 50, 2 milhões de pessoas em 2011, segundo dados fornecidos pelo IBGE. Entretanto, é justamente esta a parcela social que mais sofre com a vulnerabilidade provocada pela falta de acesso. As deficiências vão desde falta de segurança e remuneração digna, passando pela ausência de acompanhamento médico e psicológico. Juntos, estes ingredientes colocam a mulher negra na base da pirâmide social brasileira.

A Fundação SEADE (Sistema Estadual de Análise de Dados), fez um levantamento mostrando que, apenas no Estado do São Paulo, a taxa de morte materna entre 2000 e 2004, foi de 2.200 mulheres entre 25 e 39 anos. Do total, mulheres negras morreram quatro vezes mais comparadas com mulheres brancas.

“O espaço psicoterapêutico clínico não é uma ferramenta acessível à maioria das mulheres negras, não apenas por questões econômicas, mas também por conta das narrativas sobre experiências neste espaço, que não acolhiam suas subjetividades e suas experiências de vida.

Ser negra nesse país é estar em constante conflito e sofrimento psíquico. Intersecções como geração, classe, território, rede de apoio, quando operando todas juntas, dão as tonalidades de como esse sofrimento irá se  operacionalizar.

As trajetórias de vida, assim como as trajetórias de cuidado, precisam ser diversas, da mesma forma que somos”, explica ao Hypeness Laura Augusta – mestranda em Gênero, Alteridades e Desigualdades no Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a  Mulher da Universidade Federal da Bahia e diretora da Rede Dandaras, criada justamente para pensar a saúde da mulher negra.

“A experiência do sofrimento psíquico é vivenciada de formas diferentes nas masculinidades e feminilidades” (Imagem retirada do site  Hypeness)

Rede Dandaras foi criada em 2016 por Laura e Tainã Vieira e desde então atua com medidas para suprir a ausência do Estado no combate à violência sistêmica que atinge estas mulheres em centros de saúde. A filosofia do grupo é jogar luz sobre as conexões do racismo e machismo sistêmicos no aumento do casos de violência obstétrica, suicídio, violência física e mortalidade materna.

Para o desenvolvimento de uma filosofia antirracista, elas recorrem aos livros e fazem questão de seguir os pensamentos disseminados por nomes como as autoras Neusa Santos e Virginia Bikudo, além do trabalho exercido por instituições como o CEERT e a  Amma Psiqué.

“A Rede Dandaras realiza indicação de psicólogas negras a nível nacional, através do mapeamento lançado em 2016, atua com formação profissional através do projeto Dialogando Clínicas Pretas e com ações estratégicas de promoção de saúde, como oficinas, rodas de conversas e atividades com foco em raça, saúde e gênero.

Dialogamos com diversas profissionais, temos um quadro de psicólogas negras colunistas que são de vários lugares do país, com suas devidas experiências de atuação, tornando cada vez mais diverso, rica, equânime e responsável o nosso compromisso. 

As ações acontecem em Salvador majoritariamente, mas estamos crescendo e levando ações para outras regiões”, assinala.

“As trajetórias de vida, assim como as trajetórias de cuidado, precisam ser diversas, da mesma forma que somos” (Imagem retirada do site  Hypeness)

O conceito de redes é a saída encontrada não só pela Dandaras, mas por mulheres negras em busca de um tratamento igualitário e que respeite as diferenças. Neste sentido, a inserção de profissionais de pele preta nos setores de saúde pública é mais urgente do que se imagina.

A campanha SUS Sem Racismoapresenta números alarmantes sobre a situação da saúde pública de mulheres negras. Quando o assunto é mortalidade materna, 60% das vítimas são negras. Apenas 27% delas tiveram acompanhamento de especialistas durante o parto, ao passo que 46,2% das mulheres brancas foram assistidas ao longo da gestação.

Diagnósticos como depressão, ansiedade, síndrome do pânico, ideações suicidas e até mesmo alguns casos agudos de dissociação aparecem entre os casos e podem ser observados também como efeitos psicossomáticos do sofrimento racial. Lidar com o sofrimento psíquico causado pelo racismo e machismo é um desafio cotidiano, não apenas para mim, enquanto mulher negra e nordestina, atravessada por esses demarcadores, mas principalmente enquanto profissional por manejar ferramentas que não foram construídas levando esses marcadores de diferença em consideração.

Laura afasta a ideia de que seria possível contornar tais problemas sem encarar de frente o machismo e o racismo que permeiam a sociedade brasileira. Para a psicóloga, existe uma resistência grande do Estado e autoridades de saúde de encarar o problema de frente, deixando de lado políticas abrangentes, mas que no fim dizem pouca coisa. O argumento dela e outras especialistas em saúde pública é o mesmo defendido por feministas negras como Djamila Ribeiro, interseccionalidade.

A questão central do cuidado para com as mulheres negras talvez não seja o enquadramento dentro da tabela do Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais, mas como o racismo e a misoginia são intensificadores de sofrimentos psíquicos e o que a psicologia, enquanto ciência e prática, ética e politicamente tem contribuído para reconhecer esses sofrimentos e o que já tem se construído enquanto estratégias de cuidado antirracistas e antimachistas.

“O diálogo multidisciplinar é algo que precisa ser fortalecido na prática de cuidado em saúde” (Imagem retirada do site  Hypeness)

Em contato com colaboradoras da Rede Dandaras, Laura Augusta criou o Dialogando Clínicas Pretas, projeto que chegada para formar uma teia com jovens negras, estudantes de psicologia ou não, que juntas pretendem compreender as particularidades de cada paciente.

“É um ato de ousadia, inovação e reparação histórica dentro do cenário da atuação clínica. A presença de jovens negras é majoritária, muitas são estudantes de psicologia e outras não, porém elas vêm aos eventos para tentar entender  que diálogos são esses e conhecer profissionais que possam acolher suas demandas”.

A personalização do atendimento é uma estrada frutífera para brecar a incidência de situações de violência obstétrica. Este método opressivo acontece quando a mulher é vítima de atos praticados por profissionais de saúde contra o exercício da sua saúde sexual e reprodutiva. Entre as mulheres negras, quantidade de vítimas desta prática é assustadora.

O protagonista desta história trágica é o racismo. Desde os tempos de vigência da escravidão, a figura da mulher negra esteve associada com duas coisas: o prazer sexual e o cuidado com as crianças (Tia Anastácia não nos deixa mentir). Com frequência, os senhores de engenho obrigavam as escravizadas a manterem relações sem consentimento (estupro) para depois dispensá-las como um mero objeto de adorno. Elas só não eram desprezadas totalmente por causa da função de amamentar as crianças e alimentar os residentes da casa grande. Daí, a máxima equivocada de que “mulheres negras são fortes”. Aliás, conceito esse que incentiva os casos de violência nos corredores de hospitais e postos de saúde.

Para mim, conceber a ancestralidade como parte do nosso repertório psíquico é um fator de promoção de saúde, visto que a saúde mental da população negra é atravessada pelo fio da diáspora, que por conta do sequestro, tráfico, escravização e perpetuação de vulnerabilidades nas vidas das pessoas de ascendência africana, fez com que não pudéssemos nos localizar, enquanto referência familiar, pertencimento étnico e principalmente como parte do conceito de humanidade, que está presente nos documentos de defesa aos direitos humanos, construção de políticas integrais de saúde e políticas públicas de assistência . Portanto, o processo de tomada de consciência racial, estando inserido nesta  sociedade onde o branqueamento é introduzido nas nossas relações cotidianamente, é algo muito forte e delicado. Reconhecer-se negra é lidar com uma maleta de questões que estão anteriores a nossa existência e outras que estão surgem no caminho, que devem servir de parâmetro para as ciências que se propõem o cuidado em saúde mental se responsabilizarem em criar ferramentas de reparação e assistência integral, pontua a soteropolitana Laura Augusta.

Psicologia preta

Não se trata de uma tentativa de fragmentação, como alguns poderiam dizer. Se você chegou até esse ponto do texto, sabe que falamos sobre a urgência da aplicação de políticas de reparação. Peguemos, por exemplo, os números do vestibular para ingressar na principal instituição de ensino do país.

Em 2017, 77% dos alunos que garantiram matrícula na Universidade de São Paulo eram brancos. Apenas 2% se declararam negros. Ou seja, como é possível lutar pela saúde da mulher negras diante da ausência completa de profissionais dentro de uma das principais universidades brasileiras?

“Enquanto não refazemos Palmares, vamos tentando cuidar da saúde mental do nosso povo” (Imagem retirada do site  Hypeness)

“O racismo é como a metástase de um câncer, devastadoramente se espalha e cria tentáculos a partir do momento em que nos movimentamos socialmente. A classe econômica enquanto intersecção, modifica a forma como o sofrimento se apresenta, todavia a presença dele é inegável.

Podemos utilizar como referência para pensar isso também, mulheres negras que ocupam representações em espaços de poder, onde estas são as únicas pessoas negras nesses lugares. Ao mesmo tempo que existe uma importância enorme dessa representatividade, o exercício de sua função, assim como sua saúde mental será atravessada pelo fato desta pessoa vivenciar esse sofrimento solitariamente. 

Então, mesmo com algumas oportunidades de mobilidade econômica e social, o dinheiro e acesso a bens e serviços não dignificará a nossa condição de negritude, visto que é no tom mais claro ou mais escuro de melanina, que portamos a criminalidade, enxergada pelos detentores de privilégios sociais, que nos diferencia do ‘cidadão de bem’”.

A chave para a equidade passa, impreterivelmente por ações e movimentos como a Rede Dandaras. Adicione um pouco de afeto e sororidade e pronto, é possível extirpar feridas abertas, que ao longo dos séculos apenas mudaram de nome.

“Estamos em nosso terceiro ano de existência, enquanto rede, mas quando chegamos já haviam outros núcleos de discussão, produção de artigos e até mesmo de construção de ações estratégicas. O Conselho Regional de Psicologia (CRP-03) possui um Grupo de Trabalho de Psicologia e Relações Raciais que é, a dez anos, um espaço que gesta muitas estudantes e psicólogos que se interessam pela temática.

Há muito pra se fazer, mas desde já, colhemos bons frutos das narrativas de pessoas que já foram atendidas por psicólogas indicadas por nós ou nos narraram como alguma atividade da Rede Dandaras contribuiu para a sua vida. Isso é potente, é transformador. Acredito em uma psicologia soteropolitana preta que já existe e está em cada espaço onde uma preta psicóloga consciente produz o seu saber e a sua atuação insubmissamente. 

Enquanto não refazemos Palmares, vamos tentando cuidar  da saúde mental do nosso povo com as ferramentas que temos e construindo outras ao decorrer da caminhada”.

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