Na batalha entre plasmódio e placenta, quem sofre é o feto

Identificação de processo inflamatório pode conduzir busca de tratamento para malária gestacional

Por Maria Guimarães, da Revista Pesquisa FAPESP

A enfermeira Jamille Dombrowski, à época estudante de doutorado no grupo de Marinho, examina gestante no Acre (Foto: Rodrigo Medeiros / Ufac)

As mulheres que engravidam em regiões onde a malária é endêmica têm motivos de sobra para se preocupar mais do que o inerente à gestação: sofrem sérios riscos de anemia, aborto, parto prematuro e de terem bebês com baixo peso. Agora, um estudo com roedores indica que a via bioquímica responsável pelos danos ao feto tem endereço certo e um caminho de medicação, de acordo com trabalho liderado pelo biólogo Claudio Marinho, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), publicado hoje (4/3) na revista Science Advances.

Por dois anos o grupo do pesquisador acompanhou 600 grávidas na região do alto rio Juruá, no Acre. Entre as que contraíram malária, parte foi causada pelo parasita Plasmodium vivax (o mais comum na região) e parte por P. falciparum, responsável por mais danos à placenta. “Descobrimos que as mães que contraíram falciparum, e tiveram bebês com baixo peso, tinham placentas com mais interleucina 1 beta [IL-1β]”, conta Marinho, referindo-se a um marcador inflamatório produzido em resposta à ativação de um grupo de proteínas conhecido como inflamassoma. Esse sistema detecta sinais de perigo no interior das células e leva a um processo inflamatório para combatê-lo, o que acaba afetando a troca de gases e de nutrientes pelo tecido placentário. “Descrevemos como os transportadores de aminoácidos ficam comprometidos”, completa o pesquisador. O tratamento habitual contra malária pode melhorar os sintomas para a mãe, mas os danos à placenta permanecem.

Detalhar os mecanismos de ação só foi possível graças aos camundongos usados como modelo para malária gestacional, um modelo desenvolvido por Marinho há cerca de 15 anos durante estágio de pós-doutorado no Instituto Gulbenkian de Ciência, em Portugal, um dos centros de pesquisa participantes do estudo atual. Infectadas com o plasmódio da espécie Plasmodium berghei, as roedoras prenhes apresentam problemas similares às mulheres grávidas com malária, com uma baixa sobrevivência dos embriões. “A inflamação afeta o espaço intrauterino e muda a fisiologia da placenta”, detalha o biólogo.

Ao produzir camundongos geneticamente alterados com o desligamento de dois genes associados ao inflamassoma, os pesquisadores bloquearam os efeitos adversos da malária gestacional. A prova de conceito do mecanismo foi a aplicação do fármaco Anakinra, usado normalmente contra artrite reumatoide, às roedoras infectadas. Seu modo de ação é justamente o bloqueio da IL-1β. O resultado foi positivo, revertendo os danos à placenta.

O pesquisador alerta que os resultados, fruto de cinco anos de trabalho, ainda são iniciais. “Vai demorar para termos uma solução.” A urgência do problema vai muito além do Acre e mesmo da Amazônia. A capa do mais recente relatório sobre malária da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 2019, traz uma africana grávida, carregando um bebê nas costas e levando uma criança pela mão. Não é uma ilustração aleatória. A África Subsaariana concentra mais de 80% dos casos mundiais da doença, que oferece maiores riscos para gestantes e seus fetos, além de crianças de até 5 anos. Em 2018, cerca de 11 milhões de grávidas nessa região foram infectadas com malária, levando ao nascimento de quase 900 mil crianças com baixo peso. Nesse ano, estima-se que 272 mil crianças com menos de 5 anos tenham morrido de malária no mundo todo, 67% do número total de mortes.

No Brasil o problema não é tão sério. Mesmo assim, o país responde por quase um quarto dos casos do continente americano, que em 2018 foram 929 mil, e teve um crescimento no número de casos entre 2015 e 2018. O relatório aponta o Brasil como o décimo, entre os países americanos, em termos de financiamento dedicado à malária para cada pessoa em risco de contrair a doença.

O medicamento testado pelo grupo da USP ainda não é a solução para as áreas de malária endêmica, nem é o momento de sair testando sua segurança em grávidas. “Cada ampola de Anakinra tem um custo muito elevado”, conta Marinho. Seu objetivo agora – já está iniciando um projeto nesse sentido – é desenvolver novas drogas, mais baratas, que tenham como alvo o receptor da IL-1β e possam ser usadas em complemento ao antimalárico.

Projetos

1. O papel dos inflamassomas na patogênese da malária associada à gravidez: Efeitos e mecanismos (nº 14/09964-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Claudio Romero Farias Marinho (USP); Investimento R$ 458.189,30.
2. Caracterização da atividade autofágica e de inflamassoma na malária placentária (nº 16/07030-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Claudio Romero Farias Marinho (USP); Investimento R$ 233.908,47.
3. Recrudescimento da malária durante a gestação: Efeitos e mecanismos (nº 18/20468-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Claudio Romero Farias Marinho (USP); Investimento R$ 173.840,72.
4. O papel das células endoteliais na imunopatogênese da LPA/SDRA murina associado à malária: Efeitos e mecanismos (nº 14/20451-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Sabrina Epiphanio (USP); Investimento R$ 304.089,81.
5. Estudo da permeabilidade vascular na síndrome do desconforto respiratório agudo associada à malária (nº 17/05782-8); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Sabrina Epiphanio (USP); Investimento R$ 175.401,39.
6. Plasmodium vivax: Patogênese e infectividade (nº 12/16525-2); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Fabio Trindade Maranhão Costa (Unicamp); Investimento R$ 2.475.132,84.
7. Imunogenética do inflamassoma, estudo translacional “da clínica à bancada, da bancada à clínica”: Análise das variações nos genes do inflamassoma em doenças autoinflamatórias monogênicas e multifatoriais para diagnóstico diferencial e aplicações terapêuticas (nº 15/23395-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Alessandra Pontillo (USP); Investimento R$ 163.807,90.

Artigo científico
REIS, A. S. et al. Inflammasome activation and IL-1 signaling during placental malaria induce poor pregnancy outcomes. Science Advances. v. 6, eaax6346. 4 mar. 2020.

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Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

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