Na lei desde 1940, aborto legal não saiu do papel para mulheres pobres

FONTERBA, por Cida de Oliveira
Imagem retirada do site RBA

O caso da menina de 10 anos que viajou do Espírito Santo a Recife para interromper a gravidez fruto de estupro mostra, entre outras coisas, que uma lei em vigor há 80 anos para garantir esse direito ainda não saiu do papel. Sobretudo quando as vítimas da violência são pobres e negras, conforme Bárbara Pereira, integrante do Fórum de Mulheres de Pernambuco e da Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto. “Desde 1940 o direito ao aborto em caso de estupro é previsto em lei. Mas na prática não é o que acontece. As mulheres e meninas pobres e negras não exercem esse direito. São as que mais sofrem e morrem devido a abortos inseguros e também as que mais demoram a relatar a violência sofrida”, diz Bárbara.

O Código Penal Brasileiro, de 1940, que tipifica o aborto como crime, também estabelece que não há punição para o médico que realiza o procedimento para salvar a vida da mulher. Também não há punição quando o procedimento é realizado, por solicitação e consentimento da mulher, no caso de uma gestação decorrente de estupro. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu incluir casos de anencefalia, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 147.

O aborto legal, entretanto, é pouco acessível a mulheres que dependem do serviço público de saúde. Um relatório publicado em junho de 2019 pela organização de direitos humanos Artigo 19 mostra que apenas 43% dos hospitais listados no Ministério da Saúde e no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) como credenciados para aborto nos casos previstos em lei realiza o procedimento. Das 176 instituições cadastradas, apenas 76 confirmam a oferta do serviço.

Principais vítimas
Pesquisa publicada em fevereiro em revista especializada da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) mostra que as principais vítimas do aborto no Brasil são as negras, menores de 14 anos e moradoras das periferias. Como é a menina capixaba de 10 anos, abusada sexualmente pelo tio desde os 6 anos.

Bárbara esteve diante do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros, em Recife, no domingo. Ela manifestou apoio ao procedimento, e avalia que o episódio das pressões em contrário reforçam a cultura do estupro. Um discurso que responsabiliza a vítima e favorece o agressor. A menina chegou a ser chamada de assassina por manifestantes que não levaram em conta sua idade nem o risco da gestação à sua vida.

“Esses grupos que se dizem pró-vida na verdade são pró-morte. Com seus discursos reforçam a cultura do estupro, ao mesmo tempo em que buscam se capitalizar politicamente (ao criminalizar um aborto decorrente de violência). Infelizmente, é muito comum essa atuação de fundamentalistas de setores das igrejas evangélicas e católicas, que se aproveitam da situação”, disse.

Além da hipocrisia
A ativista chamou atenção também para o fato de o discurso contra o aborto mesmo em caso de estupro ser comum entre aqueles que defendem a liberação de armas. O aparente paradoxo, segundo ela, vai muito além da hipocrisia. “É muito mais que hipocrisia, mais que fundamentalismo. Trata-se de um projeto político de morte, expresso na tortura a essa criança. O projeto contra as mulheres e meninas é o mesmo desencadeado contra os meninos pobres e pretos, assassinados nas periferias, contra a população LGBTQI+.”

No entanto, segundo Bárbara, a grande repercussão do episódio tem como positivo a contribuição para o debate sobre a descriminalização do aborto. E a participação da ativista de extrema-direita Sara Giromini, a Sara Winter, que publicou em suas redes sociais o nome da menina e o nome do hospital, fortaleceu ainda mais sua imagem violenta. “Ela se mostrou uma torturadora da criança ao expor tanta violência. E tomou para si uma responsabilidade sem tamanho. Não é para menos que muitos também estejam se sentindo violentados por ela.”

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