Na luta, a gente se encontra por Flávia Oliveira

flavia oliveira - Foto Marta Azevedo

Desfiles na Sapucaí ampliam visibilidade, escancaram polêmicas

por Flávia Oliveira no O Globo

Foto Marta Azevedo

Ao longo de pelo menos quatro décadas de olhar atento aos desfiles, aprendi com o carnaval muitas histórias — contadas ou não — nos livros escolares. Nenhuma delas se relacionou com o vídeo chulo compartilhado por um presidente da República que ainda não aprendeu a liturgia do cargo, e a quem é altamente recomendável a leitura de um código de conduta ou, melhor ainda, um detox das redes sociais. Jair Bolsonaro se elegeu com agenda tão ambiciosa quanto desafiadora. Prometeu dedicar os dias de folia a montar a estratégia de adesão de congressistas e da sociedade à reforma da Previdência elaborada pela equipe econômica. Em vez disso, tuitou conteúdo impróprio e depreciativo à pedagogia da mais importante festa nacional.

O que o carnaval ensina não é pouco nem recente. Décadas antes de Leandro Vieira, o artista catapultado a protagonista do espetáculo das escolas de samba, ter a ideia que levou à maiúscula vitória da Mangueira este ano, os desfiles já presenteavam o grande público com episódios soterrados pela História oficial. Em 1960, Fernando Pamplona, forjado na Escola de Belas Artes (EBA/UFRJ), inaugurou com “Zumbi dos Palmares” no Salgueiro a série de enredos afro que transformariam para sempre a folia. Joãosinho Trinta, outro gênio, reverenciou personalidades negras — de Ganga Zumba a Grande Otelo e Pelé, de Clementina de Jesus a Pinah — em “A grande constelação das estrelas negras” (Beija-Flor, 1983). A Vila Isabel, que neste 2019 deu vivas à princesa de quem tomou emprestado o nome, 31 anos atrás foi campeã com “Kizomba”, enredo de valorização das origens africanas no centenário da Lei Áurea. No mesmo 1988, a Mangueira conseguiu o vice com desfile crítico à Abolição, que não livrou os negros da exclusão social.

Grandes mulheres foram apresentadas ao país pelo carnaval: da ex-escrava e empreendedora Xica da Silva (Salgueiro, 1963) à bailarina negra Mercedes Baptista (Acadêmicos do Cubango, 2008). Foi o então carnavalesco Milton Cunha que, pela Beija-Flor, me revelou a botânica Margaret Mee (1994) e a soprano Bidu Sayão (1995); e pela Unidos da Tijuca (2003), a saga dos agudás, negros que fizeram o caminho de volta do Brasil para o continente de origem.

Necessária e alinhada ao nosso tempo, de cobrança por representatividade e protagonismo feminino, negro, indígena, popular, a narrativa da Mangueira de 2019 não é nem inédita nem suficiente. É o capítulo mais recente e, talvez, contundente de um ativismo que pavimentou longo caminho de reconhecimento a personagens e episódios menosprezados ou invisibilizados pela História. Em 1924, o jornal “Clarim da Alvorada” publicava em São Paulo coluna sobre vultos históricos, como os irmãos engenheiros Antonio e André Rebouças e o advogado Luís Gama.

Na primeira metade do século XX, a Frente Negra Brasileira reivindicava a obrigatoriedade do ensino de História da África e cultura afro-brasileira nas escolas. Nos anos 1940, o Teatro Experimental do Negro, liderado por Abdias Nascimento — que completaria 105  anos neste 14 de março, o do primeiro aniversário da execução brutal da vereadora Marielle Franco, homenageada pela Mangueira —, defendia o mesmo, conta a historiadora Giovana Xavier, da UFRJ. Mas a legislação só foi promulgada em 2003 — e jamais aplicada plenamente.

“A Lei 10.639 é resultado de lutas centenárias para reconhecer o protagonismo negro. Ao longo de 22 anos de carreira como professora, conheci centenas de colegas em todo o Brasil, que, nas condições mais precárias, contam essas histórias que não estão no retrato todos os dias”, resume a historiadora.

Desfiles na Sapucaí ampliam visibilidade, escancaram polêmicas, provocam a opinião pública, despertam o interesse. Sozinhos, não transformam. Nem o carnaval nem o Brasil. O que traz mudança é batalha diária, ação incessante. O Rio de Janeiro e o Brasil dormiram mais felizes com a vitória da Mangueira, mas não acordaram diferentes. Como bem ensinou o espetacular samba-enredo de Manu da Cuíca e parceiros: “Na luta é que a gente se encontra”.

-+=
Sair da versão mobile
Privacy Overview

This website uses cookies so that we can provide you with the best user experience possible. Cookie information is stored in your browser and performs functions such as recognising you when you return to our website and helping our team to understand which sections of the website you find most interesting and useful.

Strictly Necessary Cookies

Strictly Necessary Cookie should be enabled at all times so that we can save your preferences for cookie settings.

If you disable this cookie, we will not be able to save your preferences. This means that every time you visit this website you will need to enable or disable cookies again.