Na pandemia, aumentam denúncias de empregadas domésticas mantidas em cárcere privado

FONTESul 21, por Luís Eduardo Gomes
Polícia Civil do Rio de Janeiro resgatou idosa em condição análoga à escravidão nesta semana | Foto: Divulgação/Imagem retirada do site Sul 21

Na última quarta-feira (13), a Polícia Civil do Rio de Janeiro resgatou a idosa Maria das Graças de Sousa Rodrigues, 74 anos, da casa em que trabalhava como doméstica em Guaratiba, na zona oeste da capital fluminense. Segundo as investigações, ela era mantida em cárcere privado e era vítima de maus-tratos pela patroa, conhecida como Dona Therezinha, 84 anos, que também irá responder por redução à condição análoga à escravidão.

De acordo com a Polícia Civil, agentes encontraram a idosa trancada em uma residência sem condições de higiene, magra, debilitada, vestindo trapos e em meio a fezes de animais, que conviviam com ela no quintal da casa. Ao ser abordada, a idosa informou que não tinha a chave do imóvel e que era mantida no local por outra pessoa, que não a deixava sair e nem falar com ninguém. Os agentes apuraram junto a familiares que a vítima deixou sua casa no Maranhão em 1969 e somente agora foi encontrada por uma sobrinha. Após ser liberada, Maria das Graças disse à equipe do telejornal RJ2 que só tinha permissão para deixar a casa para levar o lixo. A Polícia ainda suspeita que a dona da casa se apropriava da aposentadoria da vítima, que sequer sabia que tinha direito ao benefício.

A situação de Maria das Graças é um caso extremo de violação de direitos de trabalhadores domésticos, mas não é uma novidade no Brasil e o problema tem crescido durante a pandemia de coronavírus. A Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) divulgou no dia 12 de abril uma nota pública em que denuncia que muitos trabalhadores domésticos estão sendo mantidos em situação de cárcere privado como condição para não perderem o emprego na pandemia. Somente o Sindicato de Empregadas Domésticas da Bahia (Sindoméstico) já recebeu 28 pedidos de socorro de domésticas confinadas, segundo noticiou o Correio 24 horas.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aponta que, no último trimestre de 2020, foram registrados 1,45 milhões de postos de trabalho no setor doméstico a menos do que no mesmo período de 2019, queda de 6,35 milhões para 4,9 milhões. Diante dessa realidade, muitas trabalhadoras acabam se submetendo a permaneceram na casa dos patrões sem folga, para não correrem o risco de serem contaminadas pela covid-19 e depois acusadas de transmitir a doença aos patrões.

“Isso não é permitido. Quando a pessoa faz um contrato assumindo o compromisso de dormir na casa do empregador, isso quer dizer que ela aceitou pernoitar, mas ela tem direito à folga por lei. O empregador deveria fazer um horário alternativo para ela não pegar o transporte público lotado ou oferecer transporte alternativo. A nossa preocupação é porque a corda arrebenta sempre do lado mais fracos. É sempre em cima das trabalhadoras domésticas”, diz Luiza Batista, presidenta da Fenatrad.

Cleide Pinto, presidenta do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas de Nova Iguaçu (RJ), diz que, somente em 2021, a entidade já recebeu mais de 20 ligações de trabalhadoras relatando que estavam sendo obrigadas a dormir na casa dos empregadores. “As trabalhadoras ligam para cá e perguntam se são obrigadas a não ir para casa, a ficar lá no trabalho. Aí a gente orienta que ela não é obrigada, que ela é livre e tem casa”, diz.

Muitas acabam evitando denunciar formalmente a situação porque temem ficar sem renda ou sofrem pressão psicológica. “Os patrões fazem chantagem, dizem: ‘ou vocês ficam ou te mando embora”, relata Cleide.

Luiza, presidenta da Fenatrad, acrescenta que muitas trabalhadoras sequer sabem a quem denunciar, por desconhecerem a lei ou a própria existência do sindicato. “A Fenatrad entende que o empregador sempre tem uma escolaridade melhor, sempre tem mais acesso a todo tipo de informação, então, quando não cumpre o que está na lei, acredito que é confiando na impunidade”, afirma.

Milca Martins, secretária-geral do Sindoméstico da Bahia, afirma também que, mesmo entre as trabalhadoras que ligam para a entidade relatando violações, muitas acabam não dando prosseguimento às denúncias. “Quando a gente chama para fazer uma entrevista para confirmar no sindicato, elas ficam com medo de sofrer uma represália”, diz.

No entanto, as dirigentes sindicais destacam que, mesmo quando há vontade da trabalhadora de escapar desta situação, acabam encontrando dificuldades, pois a legislação brasileira restringe a atuação dos sindicatos da categoria à fiscalização de denúncias. A Constituição Federal proíbe a entrada em residências sem autorização judicial, o que faz com que sindicatos e mesmo o Ministério Público tenham dificuldades para verificar a real situação. “A gente só consegue fazer alguma coisa se a trabalhadora se dispõe a nos ligar, a nos comunicar, decidir entrar na Justiça. O único jeito é ela querer. Se ela está em cárcere privado e consegue sair, a primeira orientação que damos é para ir direto na delegacia e registrar um BO”, diz Cleide.

Luiza Batista destaca que, se fosse em outra categoria, o sindicato teria, por lei, o direito de ir até a empresa averiguar, fiscalizar e ouvir os trabalhadores. “Nós não temos esse direito. Então, isso é muito preocupante nesse momento de pandemia. Muita coisa que estava debaixo do tapete está vindo à tona. Condição análoga a da escravidão, trabalhadores que, para não perder o emprego, muitas vezes se submetem a ficar dentro do emprego, só vendo a família por telefone”, diz.

Com isso, e também pelo fato de estarem, em geral, sem atendimento presencial por causa da pandemia, os sindicatos do setor acabam recebendo denúncias apenas por telefone. “Em Nova Iguaçu, teve um caso que foi bem sério no ano passado. Uma menina ligou chorando, disse que o patrão passou a chave na porta e disse que, enquanto durasse a pandemia, ela teria que ficar na casa dele, porque não ia admitir que ela ficasse se locomovendo da casa para o trabalho, do trabalho para casa. Isso é cerceamento de liberdade e pode ser considerado como cárcere privado”, diz Luiza.

No Rio Grande do Sul, o único entidade representativa da categoria ligada à Fenatrad em atividade é o Sindicato dos Trabalhadores Domésticos de Pelotas. Presidenta do sindicato, Cláudia Luiza de Oliveira da Rosa Espineli relata que, até o momento, ainda não recebeu denúncias de trabalhadoras mantidas em cárcere privado na cidade. Contudo, isso não significa que as violações de direitos não tenham aumentando durante a pandemia.

Ela afirma que diversas denúncias chegaram à entidade de empregadores que aderiram ao programa do governo federal que permitia suspensão do contrato ou redução de jornada com redução salarial, com a diferença sendo paga pela União, nos quais a empregada era forçada a manter o mesmo período de trabalho e sem receber a compensação equivalente. Ela relata que há denúncias de patrões que simplesmente deixaram de pagar sua parte. “Ficaram com medo de não ir e perder o serviço. A gente tem alguns casos na Justiça por causa disso. Elas teriam que ficar aquele período em casa, foram trabalhar e os empregadores não pagaram”, diz Cláudia.

Segundo ela, empregadores têm usado a justificativa de que foram afetados pela pandemia não só para demitir as funcionárias, mas também para pressioná-las a continuar trabalhando sem receber os valores devidos. “Há poucos dias, a gente descobriu que algumas estão ficando direto no serviço porque os patrões dizem que vão ser contaminados por elas porque ficam andando de ônibus, e aí não estão sendo dispensadas, não estão recebendo o que têm que receber. Muitas não receberam nem férias, nem 13º, porque o empregador diz que não tem condições.”

A reportagem do Sul21 procurou o Ministério Público do Trabalho (MPT) do Rio Grande do Sul para saber se a instituição recebeu denúncias de trabalhadores mantidos em cárcere privado no Estado e obteve como resposta que não há registros nesse sentido. No entanto, em artigo publicado no Jota nesta quarta (14), a procuradora do Trabalho Isabella Figueiras Gomes alerta que a “frequente desconsideração do trabalho doméstico como trabalho, somada à inviolabilidade da esfera privada das famílias, pode explicar, em muito, a ausência de dados estatísticos e a desconsideração de situações de degradação doméstica como trabalho escravo contemporâneo”.

A advogada Márcia Soares, diretora-executiva da ONG Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos, diz que a entidade vem acompanhando a situação doméstica em razão de cursos que promove para trabalhadoras do setor. Somente um curso de capacitação profissional ministrado pelo WhatsApp, em parceria com o Senac, deve atingir 1,2 mil mulheres até o final de 2021.

A partir desse contato, ela diz que ouve relatos de que muitas trabalhadoras estão acumulando funções sem acréscimo salarial. Cozinheiras que passam a atuar como cuidadoras, cuidadoras que viram também faxineiras. “O trabalhado doméstico já era o mais precarizado do País, no sentido de proteção das leis, e agora se tornou um drama. As trabalhadoras estão se submetendo a qualquer coisa para não perder o emprego, entre elas a essa prática de mantê-las em casa, numa quarentena forçada na casa dos patrões. Isso não é uma coisa isolada. Tem trabalhadora doméstica que, em um ano, ficou 12 dias em casa”, relata.

Ela destaca que contribui para a invisibilização destes crimes o fato de que eles têm como vítimas quase na totalidade mulheres e, em maioria, negras. “Você junta dois marcadores de discriminação que são constantes no País. E aí nós vamos chegar numa categoria de 98% de mulheres, quase 70% negras, que tem mais de 70% das trabalhadoras na informalidade e 92% ganham, em média, um salário mínimo ou menos”, diz.

O IBGE calcula que o salário médio de um empregado doméstico sem carteira ficou abaixo do salário mínimo em dezembro passado, em R$ 758. Já o trabalhador formalizado, com carteira, recebia R$ 1.286.

Para Márcia, as violações de direitos e a precarização das condições de trabalho das domésticas remete ao fato de que este tipo de atividade tem origem no trabalho escravo. “É uma coisa que a sociedade parece não conseguir superar nem no direito, nem no imaginário. Essa coisa de trabalhadoras em situação análoga à escravidão sempre teve, inclusive com trabalho infantil, é uma prática no Brasil. O que está acontecendo agora é o estressamento de uma situação que sempre aconteceu, só que agora ela está publicizada e está generalizada”, diz.

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