À Rainha Nanny Queen se dá o crédito de ser a personalidade que uniu os Maroons em toda a Jamaica e exerceu papel de grande relevo na preservação da cultura e dos conhecimentos africanos.
Antecedentes
A Rainha Nanny, dos Maroons da região de Windward, tem sido enormemente ignorada pelos historiadores, que restringiram seu enfoque a figuras masculinas, ao escreverem sobre a história dos Maroons. No entanto, entre os próprios Maroons, ela é tida na mais alta estima. As informações biográficas sobre a Rainha Nanny são um tanto vagas. Ela é mencionada apenas quatro vezes em textos históricos e, usualmente, em termos um tanto derrogatórios. Ela, porém, é considerada a figura mais importante da história dos Maroons. Foi a líder espiritual, cultural e militar dos Maroons de Windward e sua importância se prende ao fato de que ela guiou os Maroons ao longo do intenso período de resistência contra os britânicos, entre 1725 e 1740.
Segundo se presume, a Rainha Nanny nasceu por volta da década d 1680 na Costa do Ouro, África Ocidental, hoje conhecida como Gana. Pertenceria ou à tribo Ashanti ou à tribo Akan e chegou à Jamaica na condição de mulher livre. É possível que tenha levado para lá seus próprios escravos, pois pertenceria a uma família real. Não era incomum que os dignitários africanos tivessem escravos. Ela teria se casado com um homem de nome Adou, mas não teve filhos e morreu na década de 1730.
Moore Town é hoje a principal cidade dos Maroons de Windward. Foi fundada em 1734, depois que os britânicos arrasaram a cidade original, conhecida como “Nanny Town”.
Identidade e cultura histórica maroon
Os escravos levados da África à Jamaica provinham da Costa do Ouro, Congo e Madagascar. O grupo dominante, entre as comunidades maroon, era da Costa do Ouro. Na Jamaica eram chamados de Coromantie ou Koromantee. Tratava-se de guerreiros audazes e valentes, optavam pela resistência, pela sobrevivência e, acima de tudo, pela liberdade e se recusavam a tornar-se escravos. Entre 1655 e até a década de 1830 lideraram a maioria das rebeliões escravas na Jamaica.
A vida espiritual era de extrema importância para os Maroons, que a incorporavam a cada aspecto da existência, desde a criação das crianças às estratégias militares. Quase toda rebelião escrava envolvia práticas espirituais africanas. Líderes como a Rainha Nanny praticavam habitualmente o Obeah e eram capazes de infundir confiança em seus seguidores. Práticas espirituais tais como o Obeah e o Vudu, no Haiti, se originaram da África e, durante a época da escravidão, foram de grande significado para a população negra. Entretanto, sob o jugo colonial, quando a cultura ocidental foi imposta aos caribenhos, as práticas africanas foram proscritas e adquiriram conotações negativas.
Na cultura maroon os ancestrais são reverenciados e sua importância para a vida cotidiana é reconhecida. O passado constitui fonte de orgulho e é, ao mesmo tempo, ensinado e compartilhado. Entre os Maroons contemporâneos, a história de sua resistência contra a escravidão é uma forma extrema de orgulho que constitui grande parte de sua identidade. A história da resistência e capacidade dos Maroons de se oporem aos exércitos britânicos durante quase oitenta anos jamais se repetiu ao longo dos tempos. O que fez com que os Maroons conquistassem a liberdade foi sua coragem e determinação, que jamais falharam. Sua resistência à escravidão se apoiava no vigor de sua memória da África e de sua cultura. Essa cultura e identidade africanas lhes proporcionaram grande confiança e autoestima, a tal ponto que isso diluiu o estigma de inferioridade, imposto pelos senhores de escravos. Em consequência, a resistência à escravidão, por parte dos Maroons, foi uma defesa de sua cultura e identidade, de seus valores políticos e espirituais e uma preservação da civilização africana. É por isto que os antepassados maroons são parte integral de suas vidas cotidianas. Em cada comemoração anual dos Tratados de Paz, celebrados em 1739, há um momento “privado”, durante as festividades, do qual unicamente os Maroons podem participar. Segundo se afirma, é quando os ancestrais visitam os vivos, incluindo a Rainha Nanny, que então é honrada.
O significado das mulheres maroon
Nos engenhos e fazendas as mulheres não escapavam à brutalidade da escravidão. Casamento e uniões entre escravos eram proibidos. Aqueles que conseguiam estabelecer uniões em segredo eram forçados a suportar a separação de seus filhos, retirados de suas mães logo após o nascimento e vendidos como escravos. Muitas mulheres preferiam abortar a ver seus filhos submeter-se ao mesmo destino – a escravidão – que lhes coube. Além disso, as mulheres eram exploradas fisicamente por seus senhores, através do estupro e de outras práticas sexuais, com frequência repletas de sadismo. Elas também tinham de exercer pesadas tarefas nas sedes dos engenhos e fazendas, realizando trabalho doméstico e criando os filhos de seus senhores. Ocasionalmente algumas trabalhavam nas lavouras.
Em contraste, as mulheres maroons cultivavam a terra e eram responsáveis pela maior parte da produção agrícola em suas comunidades. Os homens caçavam porcos selvagens e atacavam engenhos e fazendas, em busca de alimento e suprimentos e com o objetivo de libertar escravos. Com frequência as terras eram atacadas para levar mulheres negras para as comunidades maroons, sem o que elas não teriam condição de aumentar sua população e garantir sua sobrevivência. Há lendas relativas a grandes guerreiras maroons, que atacavam as fazendas e libertavam os escravos. Elas portavam enormes facões, que usavam para cortar as cabeças dos britânicos. A força das mulheres, nas comunidades maroons, se devia à sua posição na cultura tradicional ashanti ou akan. A cultura ashanti se baseava numa tradição de nações guerreiras e numa história de mulheres orgulhosas e respeitadas. Muitos elementos ashanti subsistiram na linguagem e na cultura dos Maroons.
A lenda da Rainha Nanny
A Rainha Nanny foi líder militar dos maroons de Windward, que empregavam hábeis estratégias, o que lhes proporcionou repetidos sucessos em suas batalhas contra os britânicos. Ela era mestre consumada nas táticas de guerrilha e treinou as forças maroons na arte da camuflagem. A história oral narra que a própria Nanny cobria seus soldados com ramos e folhas, instruindo-os a ficar tão parados quanto possível, de modo a se assemelharem a árvores. Quando os soldados britânicos se aproximavam, completamente inconscientes de que estavam rodeados, eles eram rapidamente dizimados pelos maroons.
Os aldeamentos maroons se situavam no topo das montanhas e apenas uma vereda estreita os levava às pequenas cidades. Assim sendo, os soldados britânicos podiam ser percebidos claramente, quando se aproximavam e avançavam em fila indiana, possibilitando que fossem abatidos um a um. Tal método foi particularmente bem sucedido quando um grande número de soldados britânicos era liquidado por um grupo comparativamente pequeno de maroons.
Uma lenda famosa sobre a Rainha Nanny narra que, durante o ano de 1737, no auge da resistência maroon contra os britânicos, ela e sua gente estavam a ponto de morrer de fome. Nanny estava quase se rendendo quando ouviu vozes de seus antepassados, que lhe diziam para não desistir. Ao acordar, ela achou sementes de abóbora nos bolsos, que plantou ao pé de um morro. Daí a uma semana as sementes brotaram e se transformaram em enormes abóboras, que proporcionaram à esfomeada comunidade o alimento de que tanto necessitava. Até os dias de hoje um dos morros próximos de Nanny Town é conhecido como o Morro da Abóbora.
Existem duas versões de uma história segundo a qual Nanny se apoderava de balas. A primeira delas diz que Nanny conseguia aparar as balas com as mãos, uma forma de arte extremamente desenvolvida em certas regiões da África. A segunda narra que Nanny conseguia agarrar balas com o ânus e expeli-las novamente. O renomado historiador Edward Braithwaite sugere que a história original foi deturpada, adquirindo uma conotação vulgar, devido aos colonos britânicos, que, segundo se sabia, detestavam Nanny e estavam sendo deliberadamente ofensivos, quando modificaram a narrativa.
A última lenda sobre a Rainha Nanny diz que ela depositou um grande caldeirão no canto de uma estreita vereda da montanha. Segundo se narra, o caldeirão fervia, embora não houvesse fogo por debaixo dele. Os soldados britânicos que se aproximavam olhavam o caldeirão, caíam dentro dele e morriam. Alguns tropeçavam e rolavam montanha abaixo. Sugeriu-se que o caldeirão continha ervas especiais, com propriedades anestésicas, pois que, segundo se diz, Nanny conhecia os segredos das ervas. Os historiadores contemporâneos afirmam que, na realidade, o caldeirão era uma bacia circular, formada pelos rochedos do Rio Nanny, ao qual se juntavam as águas do Rio Stony. O fluxo contínuo do rio mantinha a água constantemente espumosa, dando-lhe a aparência de um caldeirão que fervia.
O legado da Rainha Nanny
A Rainha Nanny recebe os créditos de ter sido a única pessoa a unir os maroons, em toda a Jamaica, exercendo um papel da maior importância na preservação da cultura e da sabedoria africana. Era odiada pelos britânicos. Historiadores antigos escreveram sobre os Maroons em termos derrogatórios, tentando apresentá-los como selvagens nem um pouco melhores do que os animais. Muitas vezes a Rainha Nanny foi retratada como uma mulher sedenta de sangue. O diário de Trickness, publicado em 1788, descreveu um encontro com uma mulher, presumivelmente a própria Nanny, que usava braceletes e tornozeleiras feitas com dentes de soldados britânicos. “A velha megera usava uma guirlanda em torno da cintura, da qual pendiam nove ou dez diferentes facas.. Não tenho a menor dúvida de que muitas foram enterradas na carne e no sangue humanos”.
Boa parte dos escritos compilados por Edward Braithwaite foram fundamentais para que a Rainha Nanny se tornasse Heroína Nacional da Jamaica em 1976. Isso implicou no reconhecimento nacional da contribuição dos Maroons em assegurar a liberdade da escravidão imposta pelos britânicos.
Os Maroons de Windward, tendo a Rainha Nanny como sua líder, constituem um modelo de resistência, rebelião e sobrevivência. A própria Rainha Nanny é uma figura simbólica para todos aqueles que sofrem a opressão. Enquanto a rainha Elizabeth I enviava o pirata John Hawkins em sua própria nau e a embarcação SS Jesus partia do porto de Lubeck para a África, com ordens de transportar africanos para a Jamaica, Nanny, dos Maroons de Windward, fortalecia seu povo, para que ele resistisse à escravidão, custasse o que custasse. Assim sendo, a Rainha Nanny é a verdadeira Rainha da Jamaica.
Créditos
Os seguintes livros, todos excelentes, foram as principais fontes de informação que constitui a base de meu artigo:
A History of Queen Nanny, the Mother of Us All, de Karla Gottlieb
‘Black Rebels, African Caribbean Freedom Fighters in Jamaica’ de Werner Zips
Autora: Deborah Gabriel
Publicado em 2 de setembro de 2004
Texto publicado em Jamaica Prime Time
Tradução, pesquisa e seleção de imagens:
Carlos Eugênio Marcondes de Moura
Imagens obtidas em Google Imagens