Não é vitimismo, é racismo

Assim como muitos participantes negros de reality shows, Gleice Simão, participante do MasterChef, é odiada pelo público. Nesta última terça-feira (7) ela foi tão ofendida que chegou a ser até trending toppic no Twitter.

Por Stephanie Ribeiro Do Brasil Post

A moça é simples, simpática e amada pelos outros participantes do reality show. Características essas que geralmente contam como positivas. Então porquê ela é tão odiada pelo público do programa?

Gleice chorou ao lembrar morte de seu irmão
Gleice chorou ao lembrar morte de seu irmão

Qualquer pessoa negra que passa a viver uma realidade diferente da que outras pessoas estão acostumadas, e que por sinal é mais elitizada, terá dificuldades. Isso não quer dizer que é justo taxar a pessoa de vitimista ao se notar essas dificuldades. Contudo, é o que fazem com Gleice.

Mesmo o Brasil sendo um País de extremas desigualdades sociais (não precisamos nem de dados é só preciso passar um dia em uma sala de aula de uma grande universidade nacional e será evidente que negros estão em menor quantidade ou não existem, nesses espaços), o brasileiro é extremamente aquém ao que realmente significa racismo e quais lugares e chances uma pessoa negra está e tem em sociedade.

Então me desculpe: se Gleice quisesse se sentir como vítima, ela teria total direito de fazê-lo, pois ela é! Em um País em que a maioria da população negra é pobre e mulheres negras como ela correspondem aos níveis mais baixos nos acesso e condições sociais e de saúde pública, ela é uma vítima das circunstâncias sociais. Só não acredita nisso, quem, em um fundo pautado pela socialização da “branquitude”, acredita em meritocracia.

Gleice é simples, mulher, negra e de origem pobre. Ela realmente não teve acesso a todos os temperos e nem provou pratos de vários restaurantes conhecidos e renomados. O que não implica que ela não se esforça ou não mereça estar no MasterChef Brasil. Além do mais, ela é muito jovem em relação aos outros participantes, e tende a lidar com a pressão de outra forma.

Porém o que vejo são pessoas desconsiderando isso, ignorando que perder um irmãoassasinado na porta de casa não é fácil e superável em poucos dias. Quantas pessoas da sua família já foram assassinadas demonstrando a vulnerabilidade social que alguns estão expostos para você achar que isso não é um fator que desestabiliza uma jovem de 22 anos?

É fácil dizer que ela é chorona e fazer piadinha sobre isso. É muito “engraçado” estar odiando Gleice Simão, porque é muito fácil odiar uma mulher negra pobre que viu o irmão morrer. Difícil, mesmo, é questionar porque Livia Cathiard participante do mesmo reality e quase 10 anos mais velha, chorava em vários episódios e estava sempre para baixo, porém não recebeu repudio, e muito menos ódio do público. Mesmo que ela, em vários momentos, tenha tido um desempenho abaixo do de Gleice.

Mas fácil ainda é acreditar que todos os participantes estão em pé de igualdade quando o Leonardo Young tem um irmão chef de um restaurante conhecido e faz curso de culinária. É complexo dizer que se ele ganhar foi por mérito, pois teria tido as mesmas chances.

Bagagem cultural, intelectual e informação requerem tempo. E tempo é dinheiro. Nem todos podem se disponibilizar com facilidade. Gleice Simão tem talento, esse que precisa ser lapidado e é isso que o público brasileiro quer negar.

Se ela não estivesse incumbida reproduzir a sobremesa de tapioca do restaurante Dalva e Dito, de ninguém menos que o chef Alex Atala, ela não teria feito um prato saboroso e elogiado, mesmo com todos os problemas que sua equipe teve naquela prova.

Ou ninguém lembra disso?

A reprodução do prato da Paola Carossella que ela fez estava perfeita, porém ninguém lembra disso na hora de dizer que ela não se esforça e não tem méritos em estar nessa competição.

O problema do público com Gleice Simão começou quando ela ficou e Gabriella Palinkas foi eliminada por não ter cumprido as regras. E nesse momento a moça eliminada no auge da sua branquitude disse: “Eu sai para você ficar”.

Não querida, você saiu porque não cumpriu as regras e a Gleice cumpriu. Sendo assim, nada mais justo.

O fato não aceito pela população que se julga mais jurada que qualquer um dos chefes renomados do programa, é que dizem que a moça é queridinha e, apenas por isso continua no programa.

Desculpa, é só uma mulher negra ser bem tratada que as pessoas já dizem que ela é vista como “café com leite”?

É só uma mulher negra ser elogiada que as pessoas questionam a legitimidade dos jurados?

É só uma mulher negra ter um jeito mais tímido que já dizem que ela não se esforça, então não merece?

Uma mídia nacional chegou veicular a seguinte matéria: “De frente para a TV: A vitória do vitimismo de Gleice no ‘MasterChef'”. E a jornalista provavelmente se sentiu genial ao escrever tal atrocidade e dizer que Mara, uma das poucas ganhadoras do BBB e que tinha origem pobre, só ganhou por vitimismo também.

É evidente que temos uma questão de classe e de raça.

Uma mídia nacional chegou veicular a seguinte matéria: “De frente para a TV: A vitória do vitimismo de Gleice no ‘MasterChef'”. E a jornalista provavelmente se sentiu genial ao escrever tal atrocidade e dizer que Mara, uma das poucas ganhadoras do BBB e que tinha origem pobre, só ganhou por vitimismo também.

É evidente que temos uma questão de classe e de raça.

 

É lamentável como na ignorância as pessoas deixam evidente sua perseguição com mulheres negras, de origem pobre e com realidades que o brasileiro acha que não existem, quando, na verdade, são mais comuns do que qualquer outra.

Mara é uma das poucas vencedoras do BBB que aplicou bem seu dinheiro, conseguiu dar conforto e bem estar para família e não precisa ficar fazendo atrocidades midiáticas para ter um pingo de visibilidade e assim alguma renda, igual a outros ex-vencedores/participantes.

Gleice, assim como Mara, não tem sobrenome rebuscado, não tem irmão chef de cozinha, e nem dinheiro para experimentar pratos e ter leque de opções na hora de criar menus. Mas ela tenta! E representa uma parcela da população que muitas vezes não tenta, pois na ausência de se ver em determinados espaços acredita que não é boa o bastante.

Parcela esta que adequa suas defesas quando se faz necessário, afinal, segundo o próprio discurso méritocrático, se Gabriela tinha as mesmas chances e mais talento que Gleice, ela deveria ter voltado na repescagem.

O que vimos foi a Gleice que todo mundo julga “não ter aptidão”, fazendo o prato mais diferente e inteligente da noite. Inclusive o único que esteticamente se diferenciava dos demais. Sendo a primeira a ser chamada para subir de volta ao mezanino, dessa vez, Gabriela saiu para o Fernando ficar.

E foi tarde. Suas habilidades na cozinha não eram nada extraordinárias. Eu não entendo toda a mobilização em prol de se fazer justiça para essa moça. E principalmente não consigo lidar com o fato dela ter sido eliminada duas vezes por seus erros e as pessoas insistirem que Gleice que acabou com a carreira culinária dela

 

Mohamad Hindi Neto, um dos primeiros participantes do Masterchef Brasil, era extremamente ruim. Não tinha pratos-destaque, era ruim nas provas coletivas, vivia ficando na berlinda, mesmo com um leque de pratos rebuscados ficava sempre atrapalhado e não executava nada bem. E mesmo assim ele só saiu já no fim do programa. Ganhou perfil em revistas para adolescentes, tem várias matérias mostrando seu sucesso com o público, ele era o típico “jovem atrapalhado” que soava “engraçadinho”.

Porque a receita mal executada e gostosa do Mohamad era legal e divertida, e uma trufa da Gleice com os mesmos problemas é motivo para o twitter todo se mobilizar em repudio a ela?

Porque odiamos Gleice e não odiamos Mohamad?

E ressalto para os que dizem que Gleice chora demais: não só ela não chora demais, como outros participantes tiveram comportamentos muito mais exagerados em reality shows e não foram repudiados. A própria Ana Paula do BBB teve atitudes aquém do normal, chegando a agredir um participante. Contudo, tudo bem ela ser daquele jeito, mesmo que um ano antes a Angélica fosse uma versão sua negra, e tenha sido taxada como desnecessária, chata e foi repudiada pelo público. Por fim teria recebido ofensas racistas, assim como Adélia sofreu, mostrando o nível de racismo do público nacional desses programas.

As pessoas dizem que não aceitam e se julgam as mais conhecedoras sobre realitys shows, portanto lanço o desafio. Pesquisem e respondam: de todos os realitys nacionais que vocês assistem, quantos já foram ganhos por pessoas negras?

Me tragam no mínimo 10 vencedores negros. Pode ser BBB, Casa dos Artistas, A Fazenda, Masterchef, The Voice. Me digam realmente se o número de candidatos negros vencedores são equivalentes ao número de pessoas brancas que ganharam. Me respondam porque no País onde 26% da população é de mulheres negras, a Gleice causa ódio e torcida contra sua manutenção no programa? Se analisarmos criticamente, mulheres como ela, aqui no Brasil, não ganham quase nunca programas baseados no entretenimento.

Vejam quantas pessoas com perfis como o de Mohamad, Gabriela, Ana Paula ganham amor e torcida à favor. Enquanto pessoas com perfis mais parecidos com o de Gleice, Mara e Angélica, só recebem ódio.

Podem dizer que é um assunto banal falar de realitys. Até seria se esses realmente não evidenciassem o que só para opressores é mascarado. Pensem nisso antes de lerem esse textos e acharem que no fundo não há racismo.

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