Durante vários dias, um homem planejou um assassinato em massa: comprou uma arma e teve o cuidado de raspar sua numeração, comprou material para fabricar explosivos caseiros e os produziu, escreveu cartas detalhando suas motivações e as enviou, aguardou o momento propício em que suas vítimas estariam reunidas e em plena noite de réveillon executou doze pessoas.
Fonte: Femmaterna
Entre elas, estavam a ex esposa e o filho de oito anos.
Após a divulgação irresponsável da sua carta de intenções na íntegra e sem contextualização, não tardou para que alguns homens relativizassem o crime bárbaro: por alegar ser vítima de alienação parental, o algoz certamente estava descontrolado pelo sofrimento de não poder criar o filho.
Apesar de crimes contra as mulheres serem reportados comumente como atitudes passionais, é sabido que o feminicídio costuma ser a ponta final de uma escalada de violência, e a morte muitas vezes vem em resposta a um ato de contestação das vitimas contra o processo opressivo.
Considerando-se isso e os indícios já conhecidos sobre o padrão de comportamento violento do assassino de Campinas, eu pergunto:
Você deixaria seu filho ser criado, ou ter algum tipo de convivência com um ser humano capaz de planejar a morte de diversas pessoas e que provavelmente deu sinais prévios da sua inclinação? Você acredita que um ser humano que chegou ao ponto de praticar o assassinato de doze pessoas, incluindo o do próprio filho, demonstrava condições psíquicas e morais de cuidar de uma criança? Não é a medida mais acertada e óbvia afastar uma criança do convívio de uma pessoa que dá sinais violentos de um homicídio que tem vontade e coragem de praticar?
Então, me digam, porque há homens discutindo se há alguma razão na mente violenta, doentia e misógina de um homem capaz de executar friamente doze pessoas, incluindo o próprio filho? Porque há homens insinuando que essa mãe deveria ter deixado esse homem ter acesso ao seu filho, como se fosse responsabilidade dela submeter ambos ao seu comportamento violento para evitar essa tragédia?
Ao que parece, para eles, homens possuem direitos inalienáveis sobre as pessoas com as quais mantém laços conjugais ou sanguíneos, que não podem ser rompidos jamais, independente do comportamento que eles tenham. Porque filhos e companheiras não são pessoas autônomas, são propriedades.
É com ultraje que eles vêem uma mulher que não somente conseguiu se libertar dos grilhões de um relacionamento violento, como também fez de tudo para evitar que o filho ficasse a mercê das influências nefastas do pai. Como ousou ela pensar na sua própria vida e na segurança de seu filho, a despeito das vontades desse homem, que pretendia mantê-los sob seu domínio, ainda que representasse um perigo para eles? Como ousaram os familiares se interpor em favor dessa mulher, e não deste homem, detentor de direitos de posse tão irrevogáveis e naturais?
É comum vermos o argumento da alienação parental ser utilizado em inúmeros casos de violência doméstica e feminicídio, quando envolvem casais ou ex casais com filhos. Sempre há aqueles dispostos a pintar agressores e assassinos como pobres coitados levados às últimas consequências pelo desespero de ter “perdido a família” e “não poder ser pai”. E a inferência mais explícita é sempre convenientemente deixada de lado: um homem que chegou ao ponto de agredir e matar alguém não é uma pessoa de quem uma mulher, ainda mais com crianças, deveria mesmo ter se afastado? Se nós que temos filhos naturalmente evitamos que eles fiquem na presença de pessoas violentas que ameacem a sua segurança, porque essa medida deveria ser revogada, nos casos em que essa pessoa violenta é o próprio pai? Devemos admitir, então, que as vontades de um homem precisam ser colocadas acima da preservação da integridade física de outras pessoas? E ainda ousam dizer que isso não é machismo?
A perda que causa tamanho “desespero” não é a da família ou do amor, mas a do poder. É tão grande o sentimento de posse, que não se admite que essas mulheres e essas crianças sigam com suas vidas, sem que possam ser integralmente controlados. Como podem meros objetos se tornarem autônomos assim?
Doze pessoas são mais vítimas do que as deixadas por muitos atentados terroristas, mas nem essa quantidade absurda de mortos é suficiente para que a sociedade enxergue o feminicídio como o crime de ódio que ele é. Alimentado, como todos os outros, pelo sentimento de extrema superioridade, que não admite contradição.
Dilacera o coração saber que Isamara conseguiu romper com um medo que paralisa tantas mulheres: o de ser agredida ou morta, ou de ver seus filhos terem tal destino, justamente por dizer “basta!”. Infelizmente, não foi o suficiente. E já que nem um caso tão bárbaro teve a devida repreensão irrestrita, também dilacera pensar no caminho longo que ainda temos pela frente, e em como todas nós corremos o risco de termos o mesmo fim.