Não há Lázaro nas religiões afro: tirem o povo de ASÉ dessa história

FONTEECOA, por Luciana Bispo
Luciana Bispo, assistente social e ialorixá (Foto: Julio Kohl/UOL)

Em fuga desde o dia 9 de junho após assassinar uma família inteira em Goiás, o Lázaro Barbosa tem sido diariamente procurado por centenas de policiais, carros, helicópteros, drones, cães, mas sem sucesso. A perseguição desse criminoso se tornou, como de praxe, num grande espetáculo para os programas sensacionalistas e policialescos da TV aberta. Lázaro, um assassino experiente, vem surpreendendo desde 2017, quando fugiu pela primeira vez, certificando-se da fragilidade do sistema de segurança pública, incapaz de mantê-lo em cárcere, mas sua habilidade de fugir, entre outras dimensões dessa história, tem sido ofuscada pelo racismo religioso que ganha cada vez mais força.

Diante do inegável fracasso da polícia na captura de Lázaro, narrativas fantasiosas e mirabolantes, de ordem espiritual, têm sido construídas e exploradas como justificativa para a visível incompetência das autoridades, como a de que Lázaro seria alguém que supostamente tem o “corpo fechado”, que faz “macumba”, carrega o caderno de São Cipriano, detém poderes sobrenaturais e que teria, ainda por cima, assentamentos de divindades e entidades de religiões de afro-brasileiras em sua casa, a fonte “demoníaca” que explicaria suas ações violentas.

Apesar de sua soltura estar vinculada ao seu bom comportamento no presídio como um pregador evangélico – fé confirmada pela sua esposa – e das denúncias de fake news que tentam associá-los a religiões afro-brasileiras, muitos ainda insistem na construção de uma fantasia racista que atua como um disfarce da própria incompetência e despreparo da polícia, que então passa a descontar sua raiva, frustração e, sobretudo, racismo, nos terreiros que invadem violentamente e sem ter qualquer mandado. Essas invasões, aliás, muito lembram o modo como a polícia invade favelas e comunidades por todo o país, então não há nada de novo nessa postura.

Em defesa mais uma vez dos terreiros desse país, afirmo desde o título: não há Lázaro nas religiões afro-brasileiras. Lázaro aqui não é uma referência ao nome em si, muito menos uma negação de que existem pessoas de nossa fé que cometem violência, como em qualquer outra religião. A questão é que a violência nada tem a ver com os fundamentos de nossas religiões. Além disso, o que quero aqui ressaltar é que Lázaro, um personagem bíblico, ou seja, vinculado ao cristianismo, faz parte de uma fé baseada na dualidade entre o bem e o mal, na ideia de pecado, céu e inferno, Deus e diabo, por exemplo, noções inexistentes nas religiões afro-brasileiras, que não têm Lázaro, mas, no caso do Candomblé Ketu, lugar de onde eu falo, mas Ogun, Oxóssi, Oxaguian, Xangô, entre outros, e não acredita em Diabo, pecado, inferno, mas no culto da natureza e da ancestralidade, no equilíbrio e troca entre as diferentes energias e forças que compõem o mundo, valorizando o bom caráter, o aprendizado e a sabedoria adquirida durante a vida.

Não há Lázaro nas religiões afro-brasileiras, pois não incentivamos ações violentas, não formamos pessoas para o crime, muito menos realizamos práticas com o intuito de matar alguém; pelo contrário, nossa fé nasceu numa perspectiva de luta, resistência e cuidado coletivo e individual contra a violência da escravidão e a posterior criminalização de nossos cultos, numa imensa e corajosa defesa da nossa ancestralidade. O culto aos orixás não está baseado na violência, no desrespeito e na tortura de ninguém, pois a nossa prática cotidiana é de celebrar a vida, cuidar do outro e da comunidade nos seus diversos aspectos – coordeno uma ONG que, durante a pandemia, distribui centenas de cestas básicas mensalmente a famílias em vulnerabilidade social, por exemplo.

Nesse sentido, é absurdo e inaceitável ver que mesmo depois de 400 anos de luta, tantos passos dados e sangue derramado, a mídia, os policiais e milhares de pessoas atuem como colonizadores que insistem em atribuir às religiões afro-brasileiras, de forma racista, elementos e práticas que não são nossos. A associação de Lázaro a religiões de matriz africana é, além de equivocada, perversa e revela o quanto uma significativa parcela da população brasileira parece não conhecer a história da escravidão, a contribuição do povo negro para os alicerces desse país e as religiões de matriz africana em seus próprios termos, ignorância que programas de TV sensacionalistas alimentam constantem.

Pareço estar escrevendo sempre o mesmo texto, mas é fundamental resgatar nossa importância e as recorrentes violências vividas por causa de uma ignorância ou de um desejo de manter um velado processo de criminalização de nossa fé, com ações que parecem remontar à escravidão e que caluniam, ferem, matam e insistem em nos condenar até por aquilo que não temos qualquer envolvimento ou responsabilidade. Nesse caso, a incompetência e o despreparo da polícia ganharam outro nome: “macumba”. Por isso, digo e repito: não há Lázaro nas religiões de matriz africana. Temos Exu, mas Exu e o povo de axé não têm nada a ver com o fracasso de uma das maiores operações policiais dos últimos tempos para capturar um foragido.

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