Naomi Wolf: “A Cultura Reprime o Desejo das Mulheres”

Naomi Wolf, feminista americana. Seu novo livro, Vagina, mostra como a ciência e a cultura trataram, historicamente, a sexualidade da mulher. Entrevista de Paulo Nogueira

PAULO NOGUEIRA*

 

CONCEPÇÕES

 

Ao publicar o mito da beleza, em 1991, Naomi Wolf se tornou uma das principais feministas do mundo. No livro, ela dizia que exigências opressivas de beleza eram uma contrapartida à emancipação feminina. Desde então, sua carreira foi sinuosa (para alguns, errática). Acusou o crítico literário Harold Bloom de assédio sexual, 20 anos após o alegado acontecimento – e acabou acusada pela colega Camille Paglia de promover uma “caça às bruxas”. No ano passado, quando completou 50 anos, em Nova York, foi presa no protesto Ocupe Wall Street.

Recentemente, lançou o livro Vagina, a new biograph, cujo título (Vagina, uma nova biografia, em tradução livre) provocou escândalo. A obra diz que o desejo e o prazer da mulher não estão na vagina ou no clitóris, mas em hormônios e neurotransmissores cerebrais.

ÉPOCA – Na seção de livros do iTunes, o título de seu livro virou V**. Uma vergonha, não?

Naomi Wolf – (Risos.) Sim, é uma vergonha. Por outro lado, é uma ilustração perfeita do que o livro trata em alguns capítulos. Termos mais degradantes para o órgão sexual feminino não suscitam tanto escândalo, por não serem rigorosos fisiologicamente. Documentei uma longa história de censura sobre as informações mais básicas da anatomia, a sexualidade e o prazer femininos. Uma repressão que se tornou cristalinamente compreensível para mim. Quanto mais as mulheres aprendem sobre sua anatomia e sexualidade, mais combativas se mostram social e politicamente. Fica mais difícil subordiná-las, e aí mora o perigo. O livro está entre os mais vendidos do iTunes. Acho que o tiro saiu pela culatra…

ÉPOCA – A senhora fala no livro de sua própria anatomia e de sua vida sexual. Pretende mostrar que a fisiologia importa mais que a cultura?

Naomi – Nunca afirmo que a fisiologia é mais importante que a cultura ou a educação. Simplesmente, parti de uma experiência pessoal: um problema em minha coluna vertebral que afetava diretamente minha vida sexual. Relutei em abordar questões íntimas, por causa do tabu sobre mulheres que discutem abertamente sua sexualidade. Mas não tinha outra opção. Senti-me obrigada a explicar o motivo pelo qual decidi escrever o livro. Entendi que, nesse caso, minha experiên¬cia poderia e deveria ser extrapolada. Poucas coisas são tão fortes e convincentes quanto um depoimento pessoal.

ÉPOCA – A vagina é a alma de uma mulher?

Naomi – Nunca disse que a alma da mulher é sua vagina.

ÉPOCA – Mas essa não acaba sendo uma interpretação do livro?

Naomi – Para os que apreciam frases de efeito, talvez. Alguns críticos literários, é verdade, tiraram essa conclusão. Problema deles. Como autora da obra, discordo inteiramente. Nunca disse isso, nunca argumentei isso, e o livro não tem esse sentido. Nem mesmo indiretamente.

ÉPOCA – A natureza valoriza o desejo sexual feminino como ferramenta evolutiva? A cultura negou essa ideia por tanto tempo…

Naomi – Sim. Para mim, a parte mais importante do livro mostra como a ciência documentou o papel do desejo sexual feminino na evolução das espécies e como a cultura tentou inibi-la ao longo da história. Em experiências de laboratório, quando os impulsos sexuais de fêmeas de ratos foram deliberadamente bloqueados, elas se mostraram letárgicas também em outros aspectos do comportamento. Ao estudar a evolução e a sexualidade, fica muito clara a repressão que a cultura exerce sobre o desejo feminino – e exatamente por causa de seu potencial evolutivo.

ÉPOCA – Mulheres são mais inclinadas ao misticismo que homens?

Naomi – O misticismo feminino foge a meu controle. Não comparo o misticismo feminino com o masculino, pois minha obra é sobre mulheres. Naturalmente, os homens acabam envolvidos, afinal a vida sexual implica ambos. Posso afirmar que o orgasmo desencadeia um formidável alívio na química cerebral feminina. Essa sensação, como inúmeras experiências científicas comprovam, corresponde em parte ao estado de êxtase que algumas situações místicas provocam. Mas é preciso distinguir e separar transcendência e experiências físicas. O orgasmo feminino, o famoso orgasmo múltiplo, realmente é mais variado e versátil que o masculino. Somos “desenhadas” assim. Portanto, potencialmente as mulheres são mais inclinadas àquela experiência que se assemelha a um êxtase transcendental – embora não se confunda com ele. Se você ler a ficção feminina contemporânea, verá quanto as descrições de prazer erótico são associadas a um “arrebatamento” e a uma “desintegração do eu”.

ÉPOCA – O que um fenômeno como o livro Cinquenta tons de cinza revela sobre a sexualidade feminina contemporânea?

Naomi – A neurociência demonstrou que determinadas conexões cerebrais fazem algumas mulheres sentir-se excitadas e atingir o orgasmo diante de situações como um espancamento. Assim, um best-seller como esse tem a ver não propriamente com masoquismo, mas com uma atração por cenários de dominação. É um lugar-comum. O importante, no sucesso estrondoso desses livros, é que continua sendo um tabu uma mulher dizer em voz alta aquilo que a gratifica sexualmente, sem se sentir culpada ou envergonhada. As leitoras do romance se identificam com a possibilidade de explorar, sem remorsos, sensações fora de uma sexualidade convencional.

ÉPOCA – É viável misturar neurociência e a tradição tântrica?

Naomi – Não as misturo. As descobertas da neurociência assinalam a relação do estresse como uma causa para a falta ou a escassez de prazer. Parte da população feminina tem dificuldade para atingir o orgasmo. Isso significa que a “revolução sexual” não funcionou para elas. Por outro lado, a tradição do sexo tântrico, que desvaloriza a pressa e realça a importância do “eu”, pode ter algo a nos ensinar, desde que não a reduzamos a uma espécie de “soft pornô” folclórico. Trata-se de realçar aspectos mais emocionais e menos mecânicos do sexo, como o abraço, a carícia ou a dança.

ÉPOCA – Clitóris versus vagina é um dilema tolo?

Naomi – Mais do que tolo. A ciência mostrou que é um dilema equivocado. A sabedoria convencional menospreza a vagina como fonte de prazer. Mais de 90% das mulheres atingem orgasmo vaginal e clitoriano, estimulando as duas áreas ao mesmo tempo. O “partidarismo” entre regiões eróticas é besteira.

ÉPOCA – Alguns críticos reclamaram que, de uma perspectiva científica, seu livro não traz nada de novo.

Naomi – A maioria dos estudos que relato é recente e publicada apenas em jornais científicos ou acadêmicos. Os estudos que cito, além de inéditos para o público em geral, nunca tinham sido interpretados politicamente, com uma ótica feminista. Meu livro explica 5 mil anos de estigmatização do prazer feminino.

ÉPOCA – O movimento Ocupe Wall Street acabou virando muito barulho por nada?

Naomi – De jeito nenhum. Foi e é importante, ao denunciar a fenomenal corrupção entranhada no sistema político e financeiro americano. O movimento se alastrou por várias cidades, apesar da oposição feroz daqueles que se sentiram ameaçados por ele. Houve numerosas detenções, inclusive a minha. Não obstante sua escrupulosa legalidade, pessoas foram agredidas pela polícia e ficaram feridas. Outras permaneceram encarceradas em condições horríveis. O objetivo era criminalizar o movimento como uma forma de “banditismo”.
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* O romancista luso-brasileiro Paulo Nogueira é autor de O suicida feliz e O amor é um lugar comum

 

 

Fonte:  Observatório da Mulher 

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