‘National Geographic’ reconhece ter sido racista por décadas

Revista tratava nativos como ‘selvagens’ e negros americanos só apareceram em reportagens na década de 1970

Por Sérgio Matsuura Do O Globo

A edição de abril da “National Geographic” é sobre raça – Reprodução/National Geographic

WASHINGTON — A “National Geographic” é uma das revistas mais prestigiadas do mundo, com histórico de 130 anos na cobertura de assuntos sobre ciência, história, geografia e cultura. Mesmo centenária, se mantém como uma referência em vários mercados, com mais de 6 milhões de exemplares vendidos mensalmente. Em editorial nesta segunda-feira, a tradicional publicação reconheceu, pela primeira vez, que ao longo de décadas muitos artigos publicados observavam o mundo sob uma perspectiva racista. Essa conclusão foi tirada de uma revisão de todas as publicações da revista desde a sua criação, em 1888.

— Tínhamos que reconhecer a nossa própria história para superá-la — explicou a editora-chefe da revista, Susan Goldberg, em entrevista à Associated Press sobre a edição de abril, que será sobre raça.

Para isso, a “National Geographic” pediu que o historiador John Edwin Mason, da Universidade da Virgínia, analisasse os arquivos da revista e apontasse episódios racistas. O especialista identificou que até a década de 1970 a publicação ignorou pessoas negras que viviam nos EUA. Quando apareciam em artigos, eram retratadas apenas como empregadas domésticos e trabalhadores braçais. Enquanto isso, “nativos” de outras regiões do planeta eram tratados como “exóticos”, frequentemente com poucas roupas, como “nobres selvagens” e outros tipos de clichê.

— Eu sabia que quando olhássemos para trás encontraríamos algumas narrativas que obviamente não faríamos hoje e das quais não nos orgulhamos — comentou Susan. — Mas me parece que, se queremos falar com credibilidade sobre raça, é melhor procurar e ver o que nós já falamos sobre o tema.

COLONIZADOS E COLONIZADORES

Diferentemente de outras revistas americanas, concluiu Mason, a “National Geographic” pouco fez para tirar dos seus leitores os estereótipos impregnados na cultura branca americana. Em novembro de 1930, por exemplo, a revista enviou um repórter e um fotógrafo para cobrir a cerimônia de coroação de Haile Selassie como rei da Etiópia. A matéria tinha 14 mil palavras e 83 imagens, contando em detalhes o ritual exótico. Mas, se o evento tivesse acontecido nos EUA, certamente estaria fora das páginas da publicação. Até 1940, negros eram proibidos até mesmo de se tornarem membros da National Geographic Society.

— Os americanos tinham uma ideia do mundo dos filmes de Tarzan e de caricaturas racistas — avaliou Mason. — A segregação era como era. A “National Geographic” não estava ensinando, mas reforçando mensagens que eles já haviam recebido. E fazendo isso numa revista que tinha uma autoridade tremenda. A “National Geographic” começou a existir no auge do colonialismo, quando o mundo estava dividido entre colonizadores e colonizados. Era uma linha de cor, e a revista estava refletindo aquela visão de mundo.

Algumas das narrativas encontradas por Mason são inacreditáveis vistas hoje. Em 1916, por exemplo, uma reportagem sobre a Austrália trazia a foto de dois aborígenes, caracterizados na legenda como os “selvagens no mais baixo ranking de inteligência entre todos os seres humanos”. O especialista pontua não apenas o que foi publicado, mas também o que ficou de fora. Em 1962, a revista publicou uma matéria produzida sobre a África do Sul, dois anos após o massacre de 69 jovens negros pela polícia em Sharpeville. O fato chocou o mundo pela brutalidade, mas, para o artigo, parece não ter acontecido.

— A matéria da “National Geographic“ quase não menciona qualquer problema — analisou o especialista. — Não há vozes de sul-africanos negros. Esta ausência é quase tão importante quanto o que está lá. As únicas pessoas negras estão apresentando danças exóticas, são serventes ou trabalhadores. É bizarro, na verdade, imaginar o que editores, escritores e fotógrafos tinham para conscientemente não ver o que acontecia.

Essa prática contrasta com a política editorial atual. Em 2015, numa reportagem sobre o Haiti, a revista entregou câmeras a jovens haitianos e pediu que eles documentassem a realidade em seus mundos. Segundo Mason, as imagens são “muito importantes”, e seriam “impensáveis” no passado. O especialista identificou ainda inúmeras reportagens mostrando “nativos fascinados pela tecnologia ocidental. Criando realmente uma dicotomia entre nós e eles, os civilizados e os não civilizados”. Também existia um excesso de fotografias de mulheres de ilhas do Pacífico.

— As pessoas de cor costumavam ser retratadas vivendo da mesma forma que seus ancestrais deveriam ter vivido há centenas de anos. Em contraste com os ocidentais, que sempre estão completamente vestidos e, muitas vezes, carregando algo tecnológico — apontou Mason. — Os adolescentes brancos podiam contar que em cada edição ou duas da “National Geographic” haveria algum seio de pele morena para olhar. E eu acho que os editores da “National Geographic” sabiam que este era um dos apelos da revista, porque as mulheres, especialmente asiáticas das ilhas do Pacífico, eram fotografadas de forma quase glamourosa.

Susan, que se identifica como a primeira mulher e primeira pessoa judaica a ocupar o cargo de editora-chefe da revista, diz ser “dolorido” apontar o dedo para artigos escritos no passado, mas assumir os próprios erros é essencial para construir, com credibilidade uma narrativa sobre raça. A editora ressalta que a raça não é uma questão biológica, mas uma “social que pode ter efeitos devastadores”. No passado, por exemplo, a colonização e o imperialismo eram justificáveis, já que os nativos de outras nações não seriam civilizados.

“Como nós apresentamos a raça importa”, afirmou Susan, em editorial. “Nossos exploradores, cientistas, fotógrafos e repórteres levaram as pessoas a lugares que nunca tinham imaginado. É uma tradição que ainda impulsiona a nossa cobertura e da qual temos orgulho. E isso significa que temos um dever, em cada história, de apresentar representações precisas e autênticas. Um dever aumentado quando cobrimos questões como a raça”.

PELE NEGRA ASSOCIADA A MALIGNIDADE

Para o brasileiro Eugenio Bucci, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), essa tendência atual de a imprensa se autorevisar faz parte de um movimento mais amplo de autocrítica, que inclui a imprensa, mas não se limita a ela.

— O que eu vejo é que nós estamos passando por alguns desafios da democracia que parecem cobrar dos agentes políticos e da comunicação, das autoridades e de pessoas que têm alguma projeção, um reexame das suas condutas. Isso existe em várias frentes, não só no racismo, mas também em relação a discriminações de gênero, ao assédio sexual e outras práticas — afirma ele. — Nós temos que compreender isso em um conjunto, como uma tentativa das instituições em geral, e da imprensa em particular, de se melhorar.

Bucci destaca que, especificamente em relação ao racismo, existe uma tradição histórica dentro meios de comunicação. Ele lembra o caso de uma edição da “Time Magazine” de 1994 que estampou em sua capa o ex-atleta O.J. Simpson com uma cor de pele mais escura do que a real, acaompanhando uma reportagem que falava de sua condenação:

— Foi um caso muito rumoroso, porque vimos claramente a associação entre a cor de pele escura e a malignidade.

 

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