Negritude de Chiquinha Gonzaga ganha acento em exposição em São Paulo

FONTEFolha de São Paulo, por Úrsula Passos
Chiquinha Gonzaga aos 47 anos, em 1984 (Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Edinha Diniz/Ciquinha Gonzaga)

Sob a luz do amanhecer, sons de vendedores, dos cascos de cavalos pelas ruas de pedra, e, ao escurecer do cair da noite, de músicos de calçadas, do falatório da saída do trabalho e dos copos que tilintam nos bares.

É o ciclo de um dia no centro do Rio de Janeiro da segunda metade do século 19 que guia o visitante na “Ocupação Chiquinha Gonzaga”. A mostra dedicada à compositora, pianista e regente é aberta nesta quarta semana no Itaú Cultural, em São Paulo.

A presença da rua na vida de uma mulher daquela época não é algo trivial. Mas Chiquinha Gonzaga não alcançou o sucesso sendo trivial e a exposição evidencia as lutas que ela encampou contra a mentalidade do período –pela abolição da escravidão, pela liberdade das mulheres e pelos direitos autorais. Segundo sua biógrafa, Edinha Diniz, Chiquinha era “uma mulher no Segundo Reinado que lutava contra o atraso social”.

Aqueles que conhecem Chiquinha da minissérie da TV Globo que foi ao ar em 1999 ou das peças de teatro também dos anos 1990 escritas por Maria Adelaide Amaral vão descobrir ali que a compositora era negra.

Logo na entrada, uma voz diz “fui educada para ser dama de salão, uma sinhazinha, mas eu fugia para ver os escravizados da fazenda dançando lundu e os sambas de umbigada, eu era uma menina negra e eu sabia disso”. É a voz de Dona Jacira, multiartista e mãe de Emicida, uma das cinco mulheres negras que emprestam sua vozes para narrar a vida de Chiquinha na mostra.

Antes vivida por atrizes brancas, Chiquinha hoje é negra. Diniz, autora de “Chiquinha Gonzaga: Uma História de Vida”, lançado em 1984, conta que quando começou a pesquisar sobre a musicista, ainda nos anos 1970, suas duas biografias existentes mencionavam que ela era morena, mas não se referiam às suas origens.

Chiquinha casou jovem, aos 16 anos, teve três filhos e, aos 25, abandonou o marido. Não existia, então, o divórcio, e uma mulher que sai de um casamento não era bem-vista. Ela passa a viver com outro homem, com quem tem outra filha. Anos mais tarde, tem um outro companheiro, décadas mais jovem e que ela apresenta como filho. Amante do escândalo, Chiquinha é rejeitada pela família e sofre, depois de sua morte, segundo Diniz, um processo de apagamento pelos herdeiros.

Há, diz ela, uma tentativa da família de esconder Chiquinha, suas conquistas, sua personalidade, suas relações amorosas e sua origem. Nos anos 1980, suas netas ainda eram vivas, e seguiam o ritual do embaçamento. “Ela era transgressora e a forma de punir o transgressor é o silêncio”, diz Diniz.

Por isso, é só em 2009, numa reedição ampliada da biografia, que fica clara a origem negra de Chiquinha. Diniz descobriu documentos que mostram que a mãe de Chiquinha era filha nascida alforriada de uma mãe escravizada.

Chiquinha participava ativamente na luta pela abolição, colando cartazes e arrecadando fundos para a causa. Seu nome e o de seu pai constam na lista de doadores da caneta com a qual foi assinada a Lei Áurea.

No começo do século 20, numa viagem a Berlim, ela descobre partituras de suas músicas sendo vendidas sem autorização. A partir daí, lidera uma campanha pelo direito autoral de compositores e autores do teatro e é uma das fundadoras, em 1917, da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, primeira recolhedora de direitos no país.

A pianista Maria Teresa Madeira frisa a importância de Chiquinha para a formação de uma identidade dos ritmos brasileiros. No século 19, eram os ritmos europeus dos salões, como a valsa e a polca, que grassavam e foi a partir deles que Chiquinha construiu uma brasilidade.

“Ela ouvia a linguagem dos chorões, desses grupos com violão, cavaquinho e um sopro. Eles pegavam essas polcas dos salões e adaptavam, com suingue, transformando em choro ou maxixe”, diz Madeira, que gravou dois álbuns com a obra da compositora e adaptou suas partituras num projeto pedagógico, Chiquinha Gonzaga para Todos, com o também pianista Wandrei Braga.

Embora tenha estudado, como muitas mulheres da época, o repertório tradicional do piano, voltado ao lazer caseiro, foi a música popular feita na rua, diz Madeira, que inspirou a criatividade compositora de Chiquinha.

“As mulheres, nessa época, não pulavam a janela da sala de visitas”, diz Diniz. Não à toa, as paredes que separam as etapas da exposição são uma referência às gelosias, espécies de cortinas de madeira vazada que se instalava nas janelas das casas que davam para a rua para impedir que as mulheres vissem o “lá fora” e que por ele fossem vistas.

Chiquinha não só pulou a janela e foi para a rua, como também por lá dançou e pulou o Carnaval. É dela a primeira música escrita para a festa, “Ó Abre Alas”, que, sem ter sido publicada em vida por Chiquinha como marchinha carnavalesca, triunfou na tradição oral até ganhar as primeiras gravações.

“Ela era destemida, ousada, curiosa”, diz Madeira. “Sua grande antagonista foi a mentalidade da época”, acrescenta Diniz.

 

OCUPAÇÃO CHIQUINHA GONZAGA

  • Quando de 24/2 a 23/5, de terças a sextas, sob agendamento obrigatório em sympla.com.br/agendamentoic ; é possível agendar visita virtual, com ou sem educador
  • Onde Itaú Cultural, av. Paulista, 149
  • Preço grátis
  • Telefone (11) 2168-1777

 

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