A rota da liberdade do negro Cosme Bento das Chagas e a Balaiada (1838-1841)

FONTEPor Edson Borges*, do Mrs Groove
(Foto: Imagem retirada no site WRádio Brasil)

Na província do Maranhão, há 170 anos, ocorreu uma célebre revolta de escravos. A insurreição de milhares de negros (1838-1840) liderados por Cosme Bento das Chagas tornou-se o fermento mais explosivo durante a Balaiada (1838-1841). Aquele acontecimento revelou um aumento do nível de amadurecimento dos negros escravos pois, através da insurreição buscaram superar a escravidão (após sucessivas fugas e a constituição de diversos núcleos de quilombolas) impondo uma forma mais incisiva de resistência àquela sociedade escravista. Tamanha era a resistência ao trabalho e à condição de escravo que, quando eclodiu a Balaiada (1838), a revolta dos negros e os numerosos quilombos já sacudiam todo o Maranhão. E todo aquele movimento ganhou mais consciência quando liderado pelo negro Cosme Bento das Chagas. Inclusive, a insurreição escrava teve continuidade mesmo após o fim da revolta dos balaios (1841). Também, antigos e novos núcleos de quilombos se mantiveram ou foram criados, alguns concentrando cerca de 400 a 500 quilombolas.
Fabricantes de balaios do século XIX.

No Maranhão, constituíram-se, inicialmente, pequenos núcleos esparsos de terras produtoras de açúcar. Em 1622, os primeiros engenhos foram construídos. Desde então, a lavoura canavieira não alcançou grandes índices de produção e comercialização. E, ainda, esteve constantemente ameaçada por grupos indígenas, pela escassez de mão-de-obra e por dificuldades comerciais. De qualquer forma, a província do Maranhão estava plenamente integrada social e economicamente na conjuntura e estrutura coloniais com as suas terras, engenhos e escravos, e com a economia de subsistência (a coleta das “drogas do sertão”, a pesca, a caça, a pequena lavoura e a pecuária). Devido ao fato de que a maior quantidade de escravos negros ser absorvida pelas zonas açucareiras de Pernambuco e da Bahia, o problema da constante escassez de mão-de-obra foi “resolvido” pelo aumento do trabalho escravo nativo. No entanto, a oposição da Igreja Católica se opôs à exploração do trabalho escravo indígena, mas não a do trabalho escravo negro. Estes tratados com extremo rigor e violência, andavam quase nus e recebiam uma alimentação insuficiente, geralmente, uma espiga de milho para o almoço, arroz e farinha para o jantar.

Foi, particularmente, desde a 2a metade do século XVIII, que se registrou um grande aumento de escravos negros, vindos das regiões de Cacheu, Bissau e de Angola. A mudança de composição racial da sociedade escravista maranhense refletiu principalmente no decorrer do século XIX, em significativas transformações econômicas e políticas, modificou ainda os padrões e valores sociais. Em conseqüência, a sociedade escravista maranhense foi abalada por diversos conflitos. Em grande parte deles, a ativa participação de escravos e mestiços foi de grande importância. Por conseqüência, a constante resistência ao trabalho forçado se refletiu histórica, individual e socialmente através de fugas, suicídios, insurreições e de crimes contra a condição imposta de ser escravo. Mas, apesar de toda a forma de repressão contra aqueles atos de resistência, o fundamental é que os escravos (submetidos como “coisas” e como homens) à condição de propriedades de outros homens, demarcavam a necessidade de se continuar a luta contra a coisificação e a favor da afirmação da liberdade.

As grandes lavouras de arroz e algodão logo se expandiram pelo interior do sertão, criando tensões por onde desalojava as antigas fazendas de gado. Todo aquele movimento de incremento do trabalho escravo negro (cujo preço foi crescente) levou à sujeição ou dependência gradativa dos proprietários de terras e de escravos aos controladores do tráfico negreiro. Este fato também incrementou o tráfico interno de escravos negros para as províncias do Maranhão, Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro entre 1801 e 1839. A necessidade crescente de escravos negros produziu um fato significativo. Na 1a metade do século XIX (ou por volta de 1822), a população total do Maranhão, excetuando os índios, era estimada em cerca de 152 mil e 800 habitantes, sendo que a proporção de escravos negros estava na casa de dois para cada “homem livre”. Nas cidades, vilas, povoações e fazendas, além da existência de negros escravos, havia os negros livres, fato este que poderia, certamente, elevar o número de negros. A expansão das lavouras de algodão para o sertão maranhense e a conseqüente necessidade do aumento do tráfico de escravos negros produziu grandes concentrações de escravos no interior. E, a presença de pouca vigilância facilitou (desde o início do século XVIII) as fugas diárias e a constituição de diversos quilombos, onde os ex-escravos mantinham casas, plantações e criações.

Em alguns quilombos exploravam-se minas de ouro, o que permitia que se mantivessem mais relações comerciais com os povoados próximos, possibilitando a compra de víveres, tecidos, armas e munições. Outros quilombolas viviam de forma dispersa, em casebres no interior das matas, praticando a agricultura e optando pelo isolamento. As trilhas que levavam até os quilombos eram diversas. Por volta de 1850, alguns daqueles quilombos tinham mais de 40 anos! Era comum os quilombos serem reconstruídos após imporem grandes resistências às tropas oficiais. Renasciam das cinzas de plantações e casebres destruídos, reconstruindo assim a rota da liberdade.

Muitos quilombos criados no decorrer do período eram, como testemunham as numerosas áreas Remanescentes de Comunidades de Quilombos, registros atuais daqueles acontecimentos históricos. Neste ponto, acentuamos que entre os heróis da história brasileira devemos enaltecer alguns participantes ativos de revoltas ou insurreições escravas e populares anteriores e posteriores ao século XIX, como o nome de Cosme Bento das Chagas.

(…) Por outro lado, deveríamos aprender a negar Duque de Caxias, historicamente imposto aos brasileiros como um dos heróis nacionais quando, uma das suas atividades mais constantes foi a de ser um autêntico representante dos interesses das elites brasileiras e um implacável destruidor de quilombos. 

Estes foram espaços sociais, políticos e ideológicos conquistados por negros. E, estabeleceram rotas da liberdade contrárias às rotas do tráfico de escravos, da escravidão, do açoite, da submissão, da pobreza, da miséria, do racismo, da exclusão social e racial.

No Maranhão, era significativa a presença dos interesses comerciais ingleses, provocando constantes reações de setores nacionais e portugueses. De maneira geral, os períodos de prosperidade que produtos como o algodão e o açúcar alcançaram no mercado internacional beneficiava diretamente os setores e os interesses dominantes do comércio ou do tráfico de escravos. A grande maioria sobrevivia presa à escassez de produtos de subsistência, `a submissão, ao escravismo e à violência. Longe, portanto, das camadas sociais ou famílias que viviam envoltas pela opulência e fortuna.

Especialmente, os senhores de engenho (que, assim como os colonos brancos, eram em sua maioria analfabetos e embrutecidos) que concentravam poder, prestígio social e econômico, condição que era alimentada pela manutenção dos grilhões da escravidão.

De uma maneira geral, negros, índios e mestiços eram social e racialmente desprezados pelos brancos e, é necessário acentuar que, também era comum a rejeição dos negros pelos mestiços. Na sociedade maranhense de então, havia casos exemplares de crioulas e mestiças amasiadas com ricos e poderosos locais que viviam rodeadas de fartura, jóias e de escravos. Porém, a grande maioria das mestiças de tudo fazia para parecer mais brancas e, em decorrência, rejeitavam abertamente negros e “mulatos” que não podiam maquiar as suas origens social e racial. E, foi exatamente no sertão onde se deu uma maior aproximação entre brancos e índios, resultando em uma numerosa população mestiça. Posteriormente, com o avanço das grandes lavouras e com a introdução da mão-de-obra escrava africana (nas plantações, nos trabalhos artesanais – onde o negro convivia com homens livres assalariados – e nos serviços domésticos) resultou em um crescente número de mestiços entre negros e brancos e, também, entre negros e índios.

As relações sociais pautadas na “raça” chegaram ao ponto de as famílias brancas rejeitarem a mistura racial, determinando que a permissão das relações e dos casamentos deveria estar ligada à comprovação da genealogia ou dos antecedentes dos pretendentes. A pureza étnica ou racial deveria estar presente e comprovada até os tetravós!!! O ideal social e racialmente positivo era ser “branco puro”. Os mulatos eram estigmatizados e, ser “pardo” era uma desonra. Porém, devido à grande quantidade de membros da “raça cruzada”, o “perigo” era um “branco puro” se “casar com bode”, ou seja, como se dizia na época, com aqueles que “haviam berrado no ventre materno”. Todo esse leque de rejeições levou a que houvesse uma grande conscientização das diferenças sociais, econômicas e raciais, assim como se tornaram um poderoso fermento para o crescimento da violência nas relações sociais maranhenses. Desta maneira, para certos membros das camadas dominantes da província, os movimentos que contestavam aquela rígida sociedade escravista eram compostos por pessoas social e racialmente ignorantes. Com isso, as revoltas e insurreições aprofundaram ainda mais os preconceitos e as barreiras sociais e raciais existentes. Ser pobre e “de cor” eram marcas que rebaixavam a condição dos indivíduos. Mas, logo os movimentos dos balaios e dos escravos tomaram proporções gigantescas e receberam milhares de adesões.

Na 1a metade do século XIX, alguns elementos serviram para alimentar o caldo de cultura que indicava profundas mudanças. A independência política, ocorrida em 1822, gerou profundas divisões e rivalidades no seio da elite dominante maranhense. Estava em jogo interesses de grupos e a direção dos mesmos diante das novas alianças e projetos que o país independente tomaria. Dentro desta ótica, outro fato significativo foi a substituição do algodão pelo açúcar na economia do Maranhão. No contexto internacional, o século XIX assistiu à definitiva instalação dos interesses ingleses na economia brasileira e a liquidação do domínio colonial português sobre o país. Naquele contexto, também, ocorreu o avanço na desestruturação da economia maranhense (fato que ocorria desde o século XVIII), tanto na agricultura como na pecuária. O alargamento da crise sobre as estruturas produtivas agravou o nível de vida das camadas populares (aumentou a miséria da população devido à falta de recursos e de terras para a produção de subsistência e de víveres e, ainda, cresceu o número de desocupados e de indigentes no sertão da província). Em contrapartida, o escravo era cada vez mais utilizado na maioria das atividades produtivas. Este fato criou tensões constantes entre as camadas pobres e livres e os escravos negros.

Toda aquela ebulição de acontecimentos possibilitou a germinação de certa semente de conscientização política. Esta apontava para a necessidade de expulsão dos portugueses (e outros estrangeiros) e a defesa intransigente da nacionalidade. Outra característica se deu na assimilação de ideais de liberdade, particularmente entre os escravos. É necessário ressaltar que aqueles acontecimentos no Maranhão ocorriam em pleno período regencial (1831-1840), contexto em que ocorreu a Abdicação de D. Pedro I e a Maioridade de D. Pedro II, com a conseqüente crise do poder nacional em constituição e as suas numerosas e sangrentas revoltas, insurreições e revoluções nas demais províncias. O debate político tornou-se intenso. A imprensa impulsionava a ebulição de idéias liberais e nacionalistas entre todas as camadas sociais, especialmente, entre os populares. O ódio aos portugueses era comum a muitas revoltas.

Os nacionais e as suas idéias nacionalistas e liberais, alimentadas na cidade de São Luís, reivindicavam (com o apoio externo, especialmente, inglês) a tomada dos destinos da província, principalmente frente aos interesses portugueses e propondo uma redefinição das relações entre Portugal e o Brasil. No entanto, estas propostas liberais não superariam as contradições da sociedade hierárquica, racista e escravista maranhense. Foi com a inclusão de vastos setores sociais do interior que se procurou redefinir algumas questões quentes. Ao desfraldar a bandeira do “liberalismo revolucionário”, os balaios enfrentaram, além da expulsão dos portugueses, a necessidade de se superar os preconceitos contra os “homens de cor” e os “brasileiros pobres”. Nesta luta se destacaram homens das “classes inferiores”, como Raimundo Gomes (vaqueiro, sertanejo e mestiço – índio com negro). Estes e outros homens carregavam objetivos, valores, interesses e ambições diferentes dos representantes da elite dominante. Então, no bojo quente da Balaiada, aquelas questões, contidas nos manifestos dos balaios, incentivaram a maior participação de mestiços, “pobres e deserdados”, além de ricos proprietários de terras e escravos, famílias influentes, filhos de pobres agricultores entre outros. Desta forma, as motivações e as consciências dos objetivos da luta só podiam ser divergentes, de acordo com as diversas categorias sociais envolvidas.

A Guerra da Balaiada no Período Colonial (Foto: Imagem retirada do site Cultura Livre)

Durante a Balaiada, os negros escravos foram rejeitados pelos líderes mestiços balaios. A maioria deles acabou, no decorrer da luta, se aliando às forças conservadoras e repressoras contra o escravo rebelado. Entre os balaios, principalmente, na fase mais aguda da repressão, as divisões internas incentivaram sérios conflitos entre os “homens de cor” (para os balaios, o “povo de cor” incluía as camadas mestiças, pobres e índios do Maranhão. Entre aqueles, não incluíam os negros livres ou escravos). Contudo, a rejeição inicial aos negros teria sido superada por alguns setores, no momento da desagregação da Balaiada, quando esta recebeu uma grande participação de negros. Aquela atitude inicial era devido à “assimilação dos valores da sociedade escravocrata pelas camadas desprovidas da população, gerando, entre elas, mecanismos de ascensão social e de rejeição ao negro”. Este tipo de comportamento envolveu a todos.

Afinal, “o processo de conscientização do escravo negro no Brasil parece ter sido bloqueado, desde os tempos da Colônia, por duas sortes de barreiras: a natureza da própria sociedade escravocrata que, obstruindo ao negro as vias de acesso social, restringia-lhe as possibilidades de uma visão abrangente do meio em que vivia; e, a marginalização da numerosa camada pobre de brasileiros que, vivendo à sombra do escravo, teve sua consciência social condicionada à própria visão do grupo dominante”. No caso específico do Maranhão de então, continua a autora, por estar “a quase totalidade da sua população pobre (mestiços e índios) ligada à pecuária extensiva e às atividades de subsistência, a introdução do escravo africano como mão-de-obra exclusiva da lavoura e, mais ainda, infiltrando-se em todos os setores da vida maranhense, representou a perda de oportunidades de trabalho para milhares de pessoas”. Entre as conseqüências, “reduziram-se, desta forma, as possibilidades de ascensão em uma sociedade onde, até aquele momento, o trabalho constituía não apenas uma forma de subsistência, mas principalmente um fator de participação social para a numerosa população pobre ligada ao trabalho livre. Vivendo essa população livre à sombra do escravo que se apropriou do trabalho, aviltando-o socialmente, ela rejeita esse escravo, primeiro como concorrente, depois pela assimilação de valores vigentes na sociedade do tempo” (Santos, 1983: 63, 89 e 103).

Desta maneira, a Balaiada como movimento social, desde o início não conseguiu superar a força da ideologia racista daquela sociedade escravista e, nem o seu fundamento, o trabalho escravo. Consequentemente, quando manifestou um “Fora feitores e escravos”, tinha uma relação maior com as possibilidades abertas para a ascensão social da maioria dos balaios, do que qualquer tipo de solidariedade com os negros escravos ou de negação do trabalho escravo. E, por mais que as condições sociais e de vida dos pobres, caboclos, mestiços e índios se assemelhassem àquelas vividas pelo negro escravo ou alforriado, os líderes rebeldes balaios estiveram a maior parte do tempo mais próximos dos liberais maranhenses pois suas reivindicações não chegaram a ultrapassar promessas de “fidelidade à Constituição, à religião católica e ao imperador, voltando-se contra a influência dos portugueses e os privilégios sociais que dificultavam a ascensão de amplos setores da sociedade maranhense” (Santos, 1983: 90). Quando falava em igualdade, seria uma conquista dirigida aos “homens de cor”, para que os mestiços, cabras e caboclos, tivessem os mesmos direitos que os brancos. Eram, então, limites que excluíam os negros, assim como ocorria com a ideologia dominante daquela sociedade escravista. Somente quando os movimentos dos balaios e dos escravos perderam a força inicial (por volta de 1840) que houve um princípio de aproximação entre eles. Foi quando a luta assumiu o caráter de uma revolta dos “homens de cor contra os brancos”, momento em que se organizou uma implacável repressão contra os últimos e persistentes revoltosos. O líder dos balaios, Raimundo Gomes, após ser derrotado, juntou-se (em 1839) aos quilombolas liderados por Cosme Bento das Chagas. Posteriormente, em 1841, juntou-se a um grupo de índios, até render-se com mais de 700 rebeldes às tropas do futuro Duque de Caxias. A fome, a doença e a repressão venceram os cerca de 11 000 mil balaios. Entre eles, havia grande número de camponeses pobres, índios, mestiços, brancos e negros.

O grande medo das elites era a ocorrência de uma rebelião negra. Naquela etapa da insurreição “os negros aprenderam com os balaios as táticas de guerrilhas, quando a sua luta extrapolou a resistência dos quilombos para os confrontos em campo aberto com as tropas da legalidade. Como os balaios, também os negros incendiavam as casas e os paióis para que o inimigo não encontrasse recursos de abastecimento”. Foi, então, “entre 1838 e 1841 – com a Balaiada – que os movimentos de escravos no Maranhão adquiriram novas performances, ultrapassando os níveis de resistência tradicionalmente utilizados (fugas, assassinatos, quilombos) e caracterizando-se pela resistência ativa com grandes mobilizações e razoável grau de organização” (Santos, 1983: 91 e 96).

Com o alastramento da revolta dos balaios e dos movimentos de fugas, quilombos e insurreição de escravos foi todo o sistema de poder, produção e dominação escravista maranhense que esteve ameaçado. Em 1839, conservadores e liberais superaram as suas divergências e passaram a unificar a luta contra aqueles que ameaçavam a continuidade do sistema. Imediatamente, unificou-se o uso da força pelo governo. Com a ajuda de proprietários e comerciante organizou-se batalhões provisórios em diversas localidades. Também, em 1840, Luís Alves de Lima, o futuro Duque de Caxias, assumiu a presidência da província do Maranhão. À frente de cerca de 8 000 mil homens, estavam dadas as condições para a grande repressão que reuniu, ainda, lavradores, agregados, feitores e as poderosas famílias locais contra a Balaiada e as diversas formas de resistência à escravidão. Por volta de 1840, o movimento dos balaios começou a se desintegrar, devido às primeiras traições e à força da repressão adotada pelo governo. Para as classes dominantes da época, a cor e a pobreza eram tão pecaminosas quanto aquelas rebeldias. Para alguns, a cor era um defeito maior do que a pobreza.

Mas, diante de tudo isso, o grande foco da revolta escravista foi na região de Itapicuru, que chegou a concentrar cerca de 20 mil negros e ameaçou o “sossego público” do Maranhão. Daquela região o negro Cosme, ao fugir da cadeia de São Luís, iniciou uma grande insurreição de negros em várias fazendas da redondeza. O negro Cosme distribuía cartas de alforrias a seus seguidores e concedeu a si próprio o título de “Tutor e Imperador da Liberdade”. Cosme sabia ler e escrever, tinha cerca de 40 anos e chamava a sua luta de “Guerra da Lei da Liberdade Republicana”. Estendia a Irmandade do Rosário a todos aqueles que apoiavam a sua luta. Como líder espiritual, era onde o negro Cosme concentrava todas as suas forças.

Cosme Bento das Chagas, como chefe negro, expressou o seu grau de consciência política e o valor que dava à liberdade, quando procurou estabelecer uma escola de ler e de escrever no quilombo de Lagoa-Amarela, na comarca do Brejo. Chegou a liderar cerca de 3 000 mil negros. Defendia a autoridade do Imperador Pedro II, todavia foi um negro forro e resistente ativo naquela sociedade escravista. Era natural de Sobral, no Ceará, não tinha domicílio certo e vivia de comandar a tropa de negros com o objetivo de acabar com a escravidão. Segundo o futuro Duque de Caxias, o “Tutor e Imperador da Liberdade” foi quem mais assustou os fazendeiros locais. Do grande quilombo situado na fazenda Lagoa-Amarela, próximo ao rio Preto, mantinha piquetes avançados e dirigia grupos de quilombolas que roubavam e incentivavam a insurreição nas fazendas da região. Na verdade, em toda a província do Maranhão eram milhares os negros quilombolas, tornando a insurreição incontrolável e generalizada. O negro Cosme, então, não tinha o controle sobre todos os negros rebelados.

(Foto: Imagem retirada do site Conhecimento Científico)

A partir de 1840, as perseguições se tornaram mais constantes e sangrentas para a captura de Cosme e seus homens. No final, cerca de 200 negros resistiram bravamente às tropas do futuro Duque de Caxias. Um grande número de quilombolas foi aprisionado (entre eles muitas crianças), e devolvidos a seus antigos senhores. O negro Cosme, ferido, ainda tentou refugiar-se entre os índios. Mas, foi capturado após uma heróica resistência de todos aqueles negros. Muitos morreram diante das tropas legalistas. O processo de julgamento de Cosme Bento das Chagas ocorreu de março de 1841 até abril de 1842. Em 5 de abril daquele ano, foi condenado à pena de morte. Foi enforcado na vila de Itapicuru-Mirim, talvez, entre os dias 19 e 25 de setembro de 1842. Assim como os búzios de 1798 em Salvador, e tantos outros, o negro Cosme foi justiçado para servir de exemplo. Mas, outros escravos e negros não aceitaram aquele “exemplo”, pois os cativos continuaram resistindo e formando quilombos. E, com isso, nos transmitiram verdadeiros exemplos. Histórias como essas nos ensinam o poder da organização e a necessidade de termos a consciência de que a luta continua. Afinal, os afro-brasileiros seguem lutando contra a ideologia, o racismo e a dívida histórica que a sociedade brasileira impõe ao povo negro, mesmo após a superação da escravidão.

Este texto foi baseado nas informações contidas no livro de Maria Januária Vilela Santos. A Balaiada e a Insurreição de Escravos no Maranhão. São Paulo: Ática, 1983.

*Edson Borges é Mestre em Antropologia Africana pela USP. Editor da revista Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Cândido Mendes (Ucam). Professor do curso de pós graduação “História da África” pela Ucam. Pesquisador e historiador. Esse texto foi escrito há 10 anos, mas o site resolveu dá-lo integralmente.

Foto em destaque: Reprodução/ WRádio Brasil

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