Negro Homem, Negra Poesia: José Carlos Limeira

JOSÉ CARLOS LIMEIRA (1951-2016)

In memorian

Nasceu em Salvador Bahia Brasil, no dia 1º. de maio de 1951. Publica contos, artigos, crônicas e poemas desde os anos setenta, com trabalhos traduzidos em vários idiomas, publicados na Alemanha, USA, Itália, Portugal e França objeto de teses e dissertações no Brasil e no exterior. Organiza com regularidade recitais e coletâneas poéticas, tendo participado do Mercado Cultural Latino Americano, Congresso África Brasil de Literatura, Encontro de Escritores das Américas no Século XXI como escritor de língua portuguesa, acontecido em Tulsa-USA. Fundou o primeiro Bloco Afro Cultural do Rio de Janeiro o Afro Axé Terê Babá e o GENS (Grupo de Escritores Negros de Salvador). É membro do Coletivo de Escritores Negros Brasileiros. É citado por críticos e analistas da literatura brasileira produzida por afrodescendentes como dos mais destacados e engajados escritores.

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Negro Homem, Negra Poesia: José Carlos Limeira

Enquanto a sociedade brasileira permanecer como está, a arte com orientação étnica, abordando, criticamente, aspectos da realidade do homem negro local jamais permitirá ao público a imparcialidade cômoda de sua falsa democracia racial. Sempre haverá um chamamento: prenúncio de grandes tensões. Caso dos bem arquitetados poemas de José Carlos Limeira erigidos sobre alicerces outros e inabaláveis. Trafegando na contra-corrente da afro-poesia, há mais de trinta 30 no fronte, já provou e comprovou sua capacidade expressiva, representando de forma lírica a dor e o amor de ser diáspora.

Reli algumas coisas que escrevi
Em 1970
E pergunto: será que eu era tão atual?
Ou o mundo permanece o mesmo?
(Espelho 70)

Suas incursões poéticas valorizam motivos que representam a beleza e o drama cotidiano pela lente de um homem que acumula a experiência de transitar pela adversidade racial brasileira na condição de negro consciente de si, ciente da grandeza de sua história e admirador da inesgotável beleza de sua gente.

Me basta mesmo
essa coragem suicida
de erguer a cabeça
e ser um negro
vinte e quatro horas por dia.
(Diariamente)

Reminiscências da infância, homenagens a pessoas queridas, cenas onde flagra a histórica condição dos afro-descendentes compõem sua literatura. Sustenta sua poesia a constante e espontânea convivência com a religiosidade dos cultos afro-brasileiros e seus sedutores elogios à beleza da mulher negra – herdeira em linha direta da temática inaugurada por Luís Gama no Século XIX.

Tou contigo seu Zé
Teu papo de corimba
Protegendo invisível da rua
Porque da lua somos
Fico mais na minha
Qual é a tua pilintra
Vamos nessa, nesse verso
Vai dar pé.
Tou contigo seu Zé.
(Pro seu Zé)

Falando de nós dois, proibidos
dentro dos dias normais
e deste gosto de desespero
que esqueço no próximo gole de cachaça
para agüentar a desgraça
até poder estar com você
Negra negra
(Para uma mulher)

Temas e sentimentos sustentados pela constante busca do código poético que melhor lhe traduza, ao modo belicamente praticado por Lima Barreto, José Carlos Limeira rejeita o fascismo do colonialismo literário brasileiro. Escreve bem. Escreve de peito aberto. Escreve em primeira pessoa.

Cansei de ser o animal
amestrado que vocês
esperam.
Afinal já são
noventa e um ano de farsa
………………………………………..
Vou expor o gosto das tramas
Estarei em cada gueto
No grito de rebeldia,
Em cada beco,
No atrevimento
De mudar no papel
Os versos dos poetas.
(Consciência)

A literatura negra se desenvolve, prescrevendo, sempre, um urgente programa de lutas. Que José Carlos Limeira tem conhecimento dessa causa não resta a menor dúvida. Sua produção poética não se dissocia de seu ativismo social.

A pena da princesa tinha que ser d’ouro
Para dar um pouco de seriedade
Àquela farsa enojante.
(D’ouro)

Nas suas incursões literárias, com mestria, supera o velho dilema do feijão e do sonho. Toma partido na liga dos poetas negros, nesta frente de batalha fraternal do homem preto com a elaboração do seu discurso no intuito de verbalizar, com beleza e pujança, as experiências exemplares que o conforma numa terra camuflada pela ideologia do branqueamento

Queria ver você negro
negro queria te ver
se Palmares ainda vivesse
em Palmares queria viver.
………………………………………
O ódio do feitor
é pegajoso, fecundo
ele pode emprenhar
até as mentes mais estéreis
com seu pênis de chicote
………………………………………………………………..
Já pensou naquele país da serra da Barriga?
sei que talvez não,
uma terra
onde não fosse possível ver
uma negra ter que mostrar a bunda
abrir as coxas
tirar das entranhas
o pão de cada dia
…………………………………………..
Por menos que conte a história
não te esqueço meu povo
se Palmares não existe mais
faremos Palmares de novo
…………………………………………………….
Quilombo
Meus sonhos
Sofro de uma insônia eterna
De viver vocês
(Quilombos)

Faz poesia política, mas não cai nas armadilhas do texto panfletário. Sua linguagem segue na missão de emprestar ao leitor um pouco da sua emoção espontânea diante de experiências vividas. Repito: sua linguagem. Suas palavras… seus versos.

Eu me recuso a morrer no próximo verso,
Seria de uma inutilidade total
Deixaria um poema inacabado
E frustraria o leitor,
Que mora por dentro de cada autor,
Por condição, extremamente curioso.
(Meu leitor)

É fato que o que faz qualquer literatura é a busca de adentrar os bosques da arte no intuito de instaurar seu caráter maior que é a beleza. A crítica estética contemporânea instalou um certo mal-estar ao apontar como, no mínimo, antiquado os conceitos exatos e os juízos de valor. Realmente. Falar em literariedade em tempos de diversidade, multiplicidade, diferença, tolerância, reversão, afirmação, equidade, etc e tal, parece um pouco universalista demais. Ou seria melhor dizer fora de moda? No entanto, mesmo com difícil verbalização, não se consegue neutralizar parâmetros na abordagem de textos de beleza.

Dias ásperos, caminhos sobre ondas
Dias árduos onde o escuro era dia
Até chegar América sonho alheio
Que se fez dia de esporas…

Reconstruir o próprio peito
Sal sobre os ombros e
A dor de cantar
(Diáspora)

Feita a ressalva, não se quer apontar o que se faz universalista nesses poemas, mas os traços que os representam como demarcadores da emancipação da linguagem poética do negro brasileiro. Há em José Carlos Limeira, de forma equilibrada, aquele frio na barriga, o suspiro espontâneo, aquele sorriso involuntário, a revolta, aquela experiência que seqüestra o leitor de sua miséria cotidiana, a vontade de sair quebrando tudo, o drible que faz a frase gingar para lá e para cá, a paradinha que desconcerta o goleiro na hora do penalti, o abraço forte do grande irmão que sempre aguardamos, os ecos da nossa orgulhosa africanidade. Folha seca: a bola no ângulo e o grito de gol que há séculos espera explosão. Em outras palavras, o poeta arrisca efetivamente no trabalho de linguagem, na experimentação do verbo, na sondagem do homem, na revelação da alma, nos prazeres da carne.

Dono de minha alegria
Solução para todos os dilemas
Teu sorriso é poesia
Ou melhor e por fim
É a alma de todos os poemas
(Considerações sobre teu sorriso)

Mergulhar no teu corpo sem lençóis ou cobertas
É a rima mais certa, como beber a noite
Escondida em cada de tuas esquinas
Sem frio, sem açoite
Ora mistérios de mulher
Doutras macios de menina.
(Mergulho)

Não repousemos, simplesmente, no arcabouço técnico da crítica com sua frieza enganosa. Deixemos essa tarefa de laboratório, longe do turbilhão da rua, aos insensatos que fazem de nós e nossos passos fenômenos carentes da explicação que, pensam, só pode vir deles. Batamos cabeça a esse mestre poeta de nosso cotidiano. Cantor de nossas irmãs, mães, avós. Conversador que tem livre acesso aos deuses da afro-descendência. Cronista de nossas mazelas. Como leitor familiar, deixemos que se nos manifeste a pulsação do texto de José Carlos Limeira – um trabalho que nos prende – mesmo inconscientemente. Que exerce sobre nós, de forma balanceada, seu duplo domínio: subjetivo e objetivo.

As águas do velho Parágua
Nos reconstroem em herança
Perpetuam ensejos
Refazem esperanças
Regam Áfricas inteiras
Permanentes nestas terras
Descartam tênues fronteiras
E pretextos para guerras
(Águas do Paraguassu)

Sublevar o prazer que vem da forma do texto em função do pragmatismo da mensagem tem sido uma constante em certa parcela da poesia negra. Lembre-se que o leitor de poesia está sempre em busca daquele verso, daquela imagem, de uma linguagem que traduza seus anseios e o transporte para além de seu delimitado universo. Um texto que empreste à paisagem cores novas, novos ângulos de visão, novos contratos com o real. No nosso caso: a urgência da cor e do sentimento pretos local.

Estou contando com a primavera
Ultimamente não tem havido flores
Dentro de mim:
Tenho andado meio chuvoso,
Horizontes nublados, embora tempestuoso
São frios, frios.

Hoje de manhã não abri a janela
Saí de surpresa,
E de surpresa vi o dia:
Estava lindo.
E fiquei com vontade
De mudar minha meteorologia interior.
(Estações internas)

Mesmo a raiva, a dor e a melancolia, insistindo no máximo do paradoxo, podem causar prazer na sua recepção poética, recuperando nas possibilidades de cada verso, a desde sempre porção insondável do homem. O prazer resgatado da adversidade da vida. Não o prazer pela captação da verdade em si, o que é sonho, mas pela materialidade da arte: a musicalidade, o ritmo, a sonoridade, a escolha vocabular, a elaboração da imagem, o símbolo, o enigma…

De como na triste espera
Da promessa vindoura
Do que haverá
Um homem caminha,
E a polícia o segue
E o cachorro lhe lambe
O calcanhar.
(Fotoagosto)

A Literatura Negra se estabelece enquanto convergência da matéria e do espírito num texto que pulveriza os limites entre o mundo real e a sua representação de forma a instaurar um outro grau de percepção, de experiência e de subjetividade do homem negro. Uma ação poética que se faz em hora e local determinado, e que, acima de tudo, se apresenta como um convite ao diálogo. Mas antes de memorizar essas palavras, leitor, leia com atenção construtivista os versos de José Carlos Limeira, este poeta que optou por não se calar ou apagar de seu texto cada angústia, humilhação e sofrimento que lhe vitima a experiência de ser homem preto neste Brasil racista. Mas que também não teve medo de ser cavalgado pelos deuses africanos nesta terra cristã. Nem de amar loucamente a mulher preta neste país ariano. José Carlos Limeira tece seu olhar de presente sem desprezar o vigor da linguagem, sem apagar as feridas históricas do nosso povo, e sem empalidecer esta tinta forte que nos cobre a pele. Seus poemas é nossa experiência quilombola: “se Palmares não existia mais, eles fizeram Palmares de novo”.

Sou um negro,
mais um,
destes que não usariam henê no cabelo,
por não querer cabelos lisos
(Mais um negro).

Conheço uma pretinha
que era mulata
mas outro dia
deixou de alisar o cabelo
e hoje tem a cabeça feita.
(Mutação)

Depois, olhando na cara do empresário,
Vai calma e sacanamente dizer:
Se quiser uma mulata meu bem
Vá pintar sua mãe de preto.
(Não perdem por esperar)

MINHA POESIA

José Carlos Limeira

Minha poesia não se presta ao chá das cinco na academia
Prefiro falá-la pelas calçadas, nas paradas de ônibus
Molhada do burburinho da cidade, batuques
Minha poesia se pica pela traseira do coletivo sem pagar
Se esfrega no reggae
Vigiando atenta a cabrocha gostosa cheia de truques
Minha poesia nunca será isenta de paladar

Pode se ligar no HipHop, no toque
Haja vista seus versos aptos à fila do SUS, acordados antes da luz
A serviço do meu povo, contando seus dramas
Minha poesia pode até passar da hora na cama
Na mais pura desobediência aos patrões
E como podemos supor, não tem métrica nem rimas ricas
Podendo ser rica de palavrões
Ela é mesmo um acinte, mas acima das futricas
Jamais será clássica, fugiu da sala de aula bem cedo
Desassombrada e sem medo
Levou porradas nos porões
Já foi censurada, viajou de carona em longos anos de estrada
Minha poesia está a serviço de levantes e revoluções
Libertou-se da mordaça
Deixou de ficar calada
E se um dia não for à luta e de graça
Será toda de minha amada.

TANTO AO MAR

José Carlos Limeira

Descobri como navegante
O caminho do teu corpo
Abrigo, porto
Onde me atrevo e fico
Sem amarras ou outras mais
Calma, doca, gruta, loca
Doce e cais.
Mas se me lanço
Qual infante
Ao oceano do teu gosto
Sou afoito
Perco olhos, faróis, lampejos dos quais
E navego
Outubros, à gosto, milhas, nós
Perdido mais e mais.
Como bússola: só desejos
E te sugo em tantos beijos
Que me despejo em vendavais
O meu barco, todo corpo
Faz do teu um mar revolto
Sem enseadas, ilhas ou paz…
Náufrago de tão nu
Misturo em teu porto
Ventos do norte, brisas do sul

E tanto te rasgo nestas tormentas
Que já não sei como agüentas
Quando descanso maduro
No teu carinho de corpo
Abrigo, colo, coito.
Mas me tocas de forma tão capaz
Me deixando ao invés de calmo
Em tua toca, gruta, loca
Doce e cais
De novo
Navegante e louco
Sedento dos teus sais
E de perder de novo o rumo
em mais outros
E outros e outros
E tantos outros
Vendavais.

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Fontes dos poemas:
Atabaques (José Carlos Limeira e Ele Semog)
A razão da chama (Coletânea – Org. Oswaldo de Camargo)
Blacks intentions – Negras intenções (Ediçã bolingue)

 

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