Neguinho da Beija-Flor denuncia racismo: ‘O cachê do branco é R$ 350 mil, e me oferecem R$ 25 mil’

Imagem- Extra Globo

O ano era 1975. Mais precisamente, 1º de junho. Rejeitado pelas quatro grandes escolas da época (Império Serrano, Mangueira, Portela e Salgueiro), Neguinho da Vala, puxador de um bloco carnavalesco em Nova Iguaçu (na Baixada Fluminense), bate à porta do Grêmio Recreativo Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis, uma agremiação na fila para se tornar uma potência do carnaval carioca. Chamado pelo patrono da escola, o bicheiro Anísio Abraão, ele tinha a desafiadora missão de integrar a ala dos compositores e criar o samba-enredo de 1976. Não deu outra! Inspirado e animado com a possibilidade de uma nova vida, o franzino rapaz sonhou com rei, e o resultado você sabe qual é. Deu leão! Assim, exaltando o jogo do bicho, Neguinho se tornou da Beija-Flor há 43 anos e ajudou a escola a abocanhar o título com o desfile “Sonhar com rei dá leão”. Hoje, aos 70 anos, completados ontem (29) com festa em Parintins (Amazonas), ele conduz seu reinado sem desafinar, mostrando ser sempre imagem de resistência cultural e esbanjando saúde.

Imagem- Extra Globo

— Honestamente, nem me dei conta de que estava chegando aos 70. Não é que eu não aceite a idade, é que, pra mim, eu tenho 30, 40. Às vezes, me assusto vendo que o tempo passou. Quando percebo as meninas ainda me dando mole, querendo assunto comigo, nem acredito que envelheci (risos). Eu leio sem óculos, não uso lente de contato, não bebo, não cheiro, não fumo nada. Sou muito saudável. Mas um “azulzinho” (estimulante sexual) a gente toma de vez em quando, né? Na cama, eu e minha mulher brincamos bonito. Ela não tem reclamado — afirma o cantor e compositor, às gargalhadas, referindo-se a Elaine Reis, de 48, para exaltar ainda seu outro amor: — A Beija-Flor me deu a grande oportunidade da vida. Sou o único intérprete não remunerado do carnaval do Rio porque, na minha concepção, acho injustiça cobrar alguma coisa da escola. Ela me fez ser quem eu sou. Vejo que as pessoas valorizam muito essa fidelidade. Sou um rei fiel aos súditos. E, se gostar do Anísio (condenado por contravenção e ainda em liberdade por poder recorrer) por motivo de crime, tenho um milhão de anos para pagar.

Neguinho da Beija-Flor posa no Museu, que fica na Gamboa Foto: Leo Martins

Enquanto percorria os amplos cômodos do casarão que abriga o Museu da História e Cultura Afro-Brasileira (no bairro da Gamboa), para produzir as fotos deste ensaio como um rei africano, Neguinho buscou conhecer a história do prédio, construído a mando de Dom Pedro II (1877). Ali, entre flashs, maquiagem e trocas de roupas e acessórios oferecidos pelo coletivo AfroCriadores, ele foi enfático ao criticar a sociedade brasileira, que em sua visão parou no tempo em relação aos direitos humanos, relembrando, ainda, episódios de racismo que enfrentou — e ainda enfrenta —, mas sem baixar a guarda.

— A luta pelos direitos civis do negro é muito importante. A nossa história foi queimada, pouco se sabe ainda. Por isso, é importante termos iniciativas como a do museu e a do coletivo de artistas pretos. Pelé nega o racismo. Eu, não. Não fui embranquecido por conta da fama e do dinheiro e continuo sofrendo com isso. Um exemplo marcante para mim e recente foi quando me ligaram pedindo para eu autorizar o uso da música “É campeão” (aquela dos versos “Domingo, eu vou ao Maracanã/Vou torcer pro time que sou fã”) num comercial nacional por seis meses, e me ofereceram R$ 25 mil. Só que eu liguei para um amigo compositor, branco e de olhos azuis, que recebeu R$ 350 mil para liberar uma canção dele, tão conhecida quanto a minha. Não topei, claro! Já me ofereceram R$ 10 mil para fazer uma campanha publicitária ao lado de uma atriz branca, que ganharia R$ 150 mil. Também não aceitei. A Friboi quis me pagar R$ 1 mil para ser garoto-propaganda deles. Tá louco? Eles não querem deixar o negro vencer, mas a gente vai continuar lutando — dispara.

Calejado por ter que reforçar seu valor várias vezes ao longo da vida, Neguinho, que desde de 2007 assina oficialmente Luiz Antônio Feliciano Neguinho da Beija-Flor Marcondes, pondera quando é questionado se o seu nome artístico não é, de uma certa forma, o reforço do preconceito, principalmente no início da carreira, quando ainda atendia pela alcunha de Da Vala.

— Uma vez, estava decidido a mudar meu nome artístico. Pensei em retirar Neguinho da Vala e colocar Luiz Conde. Mas acontece que Emílio Santiago, meu amigo, foi fazer um show em Macaé e foi discriminado pelo público. As pessoas imaginavam que o dono daquela voz linda era um homem branco. Quando ele subiu ao palco, a galera foi embora, e ele ficou chorando. Então, com medo de acontecer a mesma coisa comigo, resolvi deixar Neguinho. Pensei: “Quem quiser me contratar vai saber que eu sou preto. Neguinho não pode ser branco, né? — ironiza o intérprete, para acrescentar: — Quando eu era jovem, minhas vizinhas brancas não queriam que os filhos brincassem comigo. Na opinião delas, eu não daria em boa coisa. Hoje, todos aqueles que não podiam brincar comigo morreram envolvidos com drogas e crimes.

Se atualmente Neguinho tem paz e tempo para falar sobre a vida e, se quiser, pode decidir até não fazer nada, ele deve isso à mulher, que colocou sua carreira nos eixos. Os dois estão juntos há 13 anos e se casaram oficialmente há dez, quando celebraram o matrimônio em plena Marquês de Sapucaí, minutos antes de a Beija-Flor disputar o título, vencido pelo Salgueiro. Juntos, ele e Elaine Reis têm Luíza, de 11 anos. O cantor ainda é pai de Paulo César, de 50, fruto de um namoro na adolescência, além de Luiz Antônio, de 37, e Ângela, de 32, de seu segundo casamento.

— Na minha casa, quem manda é Elaine. Aquela ali comanda tudo, organizou minha vida de maneira geral. Eu era muito desorganizado, gastava tudo, ajudava os outros, emprestava, comprava casa pra não sei quem… É ela quem cuida da minha agenda, vende meus shows. Se não passar pelo crivo dela, não rola — entrega Neguinho, para relembrar o tratamento contra o agressivo câncer no intestino (2009): — Já morávamos juntos e, quando ela estava com sete meses de gravidez, descobrimos meu câncer. Foi uma loucura, rapaz. Se eu morro e ela fica com a criança? Eu me inspirei muito na atriz Patricia Pillar. Quando o médico dá a notícia, um buraco se abre no chão. Chorei três dias seguidos, mas me lembrava muito dela (Patricia), que sobreviveu a um tumor muito agressivo na mama. Eu sou disciplinado, cara. Fiz 15 sessões de quimioterapia e 56 de radioterapia. Na última químio, tive choque anafilático. Quando o remédio desceu na veia, comecei a gritar: “Tô ficando cego, tô ficando cego”. E apaguei. Quase morri e fui direto para o CTI.

Apesar da doença, ele não parou de cantar. Neguinho da Beija-Flor já voou pelo mundo com um microfone nas mãos. Ao passo em que a escola de Nilópolis — que também fez 70 anos em 2019 — ia crescendo e ganhando campeonatos, ele foi se projetando e soltando a voz cada vez mais longe. Atravessou oceanos. Todo ano, apresenta-se praticamente em todos os estados do Brasil e faz, com frequência, shows no exterior. Nos últimos dois anos, foi para Alemanha, Suíça, Itália, Bélgica, França, Holanda e Estados Unidos. Para o ano que vem, já acertou uma temporada de três meses seguidos no Velho Continente:

— Os brasileiros que moram lá fora estão há muito tempo distante do Brasil. A referência deles no samba somos eu e Martinho da Vila, por exemplo. Eles não querem muito a garotada. Quando vejo o carinho do público e penso nisso tudo, passa um filme na minha cabeça. A música me tirou da mais extrema pobreza em Nova Iguaçu. Só fui ter luz elétrica em casa aos 20 anos. Passei por muitos perrengues até ter notoriedade. Já cansei de cantar em cinco lugares diferentes na cidade para fazer um dinheirinho. Dormia nos banheiros das casas de shows para descansar um pouco antes das apresentações. O Salgueiro sempre usa a frase do Xande de Pilares: “É Deus quem aponta a estrela que tem que brilhar”. Essa frase tinha que ser minha.

Neguinho da Beija-Flor posa no Museu, que fica na Gamboa Foto- Leo Martins

Por conta da visibilidade, Neguinho chegou a pensar em entrar para a política com a intenção de tentar transformar a dura realidade da sua cidade natal, na Baixada Fluminense. Mas, após um mal-entendido com o ex-presidente Lula, desistiu do plano de vez.

— Logo no início das investigações contra Lula (2014), que foi meu padrinho de casamento com Elaine, eu encontrei um conhecido no estacionamento de uma emissora de TV, às 2h da madrugada, e ele tinha feito um samba, que, apesar de engraçado, ridicularizava Lula. O cara me mostrou a canção, e eu li junto com ele, despretensiosamente. Só que uma menina que estava com o rapaz gravou aquilo sem eu perceber, colocou na internet e a história viralizou. Eu jamais faria uma coisa dessas com meu compadre. Jamais! Depois disso, perdi completamente o contato com ele. É batom na cueca, cara. Não tem como desmentir. A única petista que não virou a cara pra mim foi Benedita da Silva porque ela sabe que eu não fiz por querer — lamenta ele, para recordar a tentativa abortada de ser prefeito: — Fizeram uma pesquisa para saber as intenções de voto para prefeito em Nova Iguaçu, e eu tive 93% de apoio. Mas, quando começamos a nos reunir, conversar sobre tudo… caí fora. Tudo muito estranho, não dá para mim.

E assim, entre erros e acertos — mas realizado —, Luiz Antônio Feliciano Neguinho da Beija-Flor Marcondes projeta chegar aos 100 anos na ativa e ver sua vitoriosa agremiação se reestruturar após a saída de Laíla (que passou pela Unidos da Tijuca e hoje está na União da Ilha), o homem que potencializou a imagem luxuosa e vitoriosa que a Azul e Branco de Nilópolis ganhou nos últimos 20 anos, com oito títulos:

— Se Jamelão viveu até os 95 tomando conhaque, comendo torresmo e fumando, eu, que não faço nada disso, chego aos 100. Vocês vão ter que me aturar (risos). Quero ver a minha escola retomar seu lugar. Sem dúvida, Laíla é o maior diretor de carnaval e harmonia de todos os tempos. Eu só não concordava com a maneira como ele se dirigia aos componentes. Ficava puto e batia de frente mesmo. Mas devo muito a ele, que, já de saída do Salgueiro, fez a cabeça de Joãozinho Trinta, na Beija-Flor, para meu samba ganhar em 1976.

Os números

500 canções

Metade dessas músicas foi gravada por ele e outros cantores. Na lista, estão “É campeão” (“Domingo, eu vou ao Maracanã…”); “A deusa da passarela” (“Beija-Flor minha escola/Minha vida, meu amor”), hino da escola; e “Malandro é malando, mané é mané”, por exemplo. A outra metade é inédita.

CDs

Neguinho da Beija-Flor já gravou 29 discos. O atual sucesso é “Vovó filé”.

campeonatos

Seis sambas que a Beija-Flor defendeu na Sapucaí tiveram Neguinho como um dos autores. Desses, três ajudaram a Azul e Branco a levar o título para casa. Há mais de 20 anos, o compositor deixou de participar da disputa de samba na escola.

Serviço:

Produção: Rodrigo Barros

Maquiagem: Gabriel Ramos

Agradecimentos: Museu da História e Cultura Afro-brasileira, Tapas Buffet e Coletivo AfroCriadores

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