Nei Lopes tem indicação a título de doutor honoris causa negada por UFRJ

Episódio gera debate sobre preconceito de classe, racismo e tecnicismo no Direito; formado em advocacia, compositor é autor de mais de 40 livros

FONTEPor Luiz Fernando Vianna, do O Globo
Nei Lopes em São Paulo -(Foto: Claudio Belli – 26.jan.2018/Valor/Globo)

Nei Lopes tem muito orgulho de ser sambista — coautor de “Senhora liberdade”, “Coisa da antiga” e outras grandes músicas. Mas quem o chama assim pode, mesmo sem intenção, botar em segundo plano seus papéis de escritor e intelectual. Tratando-se de um homem negro, do subúrbio carioca, o primeiro de sua família a chegar ao ensino superior e que não desenvolveu carreira acadêmica, enxergá-lo unicamente como sambista e não levar em consideração também suas outras qualificações resvala em racismo e preconceito de classe. Foi essa a interpretação que admiradores seus fizeram de um fato ocorrido no final de junho.

A congregação (órgão deliberativo máximo) da Faculdade Nacional de Direito, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), vetou a indicação de Nei para o título de doutor honoris causa. Oito integrantes votaram contra e dez a favor, mas eram necessários 14 votos para o nome ser aprovado.

Quem carregou a culpa pelo resultado, sendo cruelmente atacada nas redes sociais, foi a professora Ana Lúcia Sabadell, relatora do caso.

Nei já recebera o mesmo título das universidades Rural do Rio de Janeiro (2012) e do Rio Grande do Sul (2017).

— Meu trabalho como compositor e escritor tem como razão principal minha condição de cidadão afrodescendente. Então, quando tive a notícia da recusa, fiquei triste. Mas, logo em seguida, a relatora do processo me enviou uma longa mensagem me pedindo desculpas. Ela, inclusive, declarou-se conhecedora da minha obra e disse que foi levada a erro pelos propositores da homenagem — diz Nei, que aceitou as desculpas.

Sabadell argumentou, em seu parecer, que o compositor apresenta “tímida atuação como advogado” e que “não guarda relação estreita com o campo jurídico”. Nei se formou na Faculdade Nacional de Direito em 1966 e largou a advocacia em 1972, passando a se dedicar à música. A relatora e a UFRJ alegaram que ela não recebeu as informações necessárias para avaliar que a homenagem era a tudo o que Nei representa.

— Talvez em outro país eu tivesse reconhecimento maior. Mas pode ser que a culpa seja minha mesmo, por fazer com que minha imagem real seja difícil de captar. Por aqui, neste país cada vez mais estranho, é muito difícil as pessoas entenderem um trabalhador que joga em diversas posições — afirma ele, de 79 anos.

O diretor da faculdade, Carlos Bolonha, ressalta que “não houve qualquer avaliação sobre o mérito e a trajetória profissional do indicado”. E informa que a decisão pode ser revertida. O requerente, advogado Eloá dos Santos Cruz, entrou com pedido de revisão. E o tradicional Centro Acadêmico Cândido de Oliveira (Caco), que representa os estudantes, defende o mesmo.

A polêmica serviu para mostrar que está aumentando o reconhecimento de Nei como escritor e pensador voltado para temas e personagens afro-brasileiros. Ele terminará 2021 com 44 livros publicados. Entre eles estão obras de fôlego como a “Enciclopédia brasileira da diáspora africana” e o “Dicionário banto do Brasil”. Essas publicações já lhe renderam narizes torcidos, como se não tivesse formação suficiente para produzi-las.

A onda de solidariedade que se sucedeu à decisão da UFRJ aponta que seu valor passa ao largo de regras acadêmicas. Advogados e juristas negros têm tomado a frente na defesa de Nei. Um deles é o juiz André Nicolitt, doutor em Direito e professor da Faculdade de Direito da UFF (Universidade Federal Fluminense).

— O argumento da rejeição reforça uma visão de um Direito fechado em si, um tecnicismo incompatível com as exigências da nossa sociedade complexa, que necessita cada vez mais de interdisciplinaridade e atravessamento de saberes. Por que o Direito não pode beber nos saberes sobre a África, da realidade do subúrbio, da literatura? — argumenta ele. — A África e a questão racial estão no centro de todos os problemas do Brasil. Nei Lopes, como pesquisador desses temas, é imprescindível para o Brasil, é um patrimônio nosso.

Em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, Silvio Almeida, professor da Fundação Getúlio Vargas e presidente do Instituto Luiz Gama, apontou que Nei “logo notou que os muros da faculdade de Direito não eram apenas físicos, mas intelectuais. Muros que se erguem para separar o Direito da vida real, cheia de sofrimentos e contradições que leis não podem dar conta”. E o classificou como um de seus mestres “na observação da vida e da sociedade”.

O compositor e escritor acredita que sua vida múltipla será mais bem compreendida quando as pesquisadoras Marília Trindade Barboza e Lara Sayão Lobato concluírem a biografia que estão preparando. Visando aos 80 anos que ele completará em abril do próximo ano, também está sendo realizada, com direção de Marcus Fernando e PH Souza, a série em dez episódios “O Rio negro de Nei Lopes”, a ser exibida no canal Music Box. Marcus Fernando ainda toca um documentário sobre a vida do artista e intelectual.

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Nei Lopes, substantivo

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