Fonte: Estado de São Paulo –
por: Roseli Fischmann*-
O discurso dirigido por Barack Obama aos estudantes de ensino básico no início do ano escolar foi cercado de polêmica, com acusações de que o presidente estaria se valendo da ocasião para propaganda política, imprópria por ser dirigida ao público infantil. Os ânimos se acirraram por todo o país, acusando Obama de procurar espalhar sua “ideologia socialista” ou de usar a volta às aulas para “doutrinar”, incluindo cobranças sobre o custo desse gesto para os contribuintes.
Analistas indicaram que todo o clamor teria se dado pela forma desastrada com que se fez a divulgação prévia da minuta das linhas mestras no portal da Casa Branca, na internet, para sugestões; ali, uma diretriz do discurso seria o convite às crianças para perguntarem o que poderiam fazer para ajudar o presidente, sendo esse ponto questionado reiteradamente, a ponto de aparecer no discurso final.
A leitura das críticas exacerbadas evidencia que havia desconforto, mas de justificativa frágil, mesmo que dedicadamente buscada. Houve jornal que relembrou críticas semelhantes feitas a Ronald Reagan e George W. Bush, como a demonstrar que não se tratava de crítica exclusiva aos democratas, nem de modo inédito de dizer a um governante que melhor faria se empregasse as verbas para cuidar dos problemas das escolas.
Mas a controvérsia parece ter outra origem, não dita, e talvez explicite como, tendo feito o mais marcante, eleger o primeiro presidente negro de sua história, a sociedade norte-americana conta, ainda, com mentalidades que não convivem com o fato com naturalidade. Afinal, é comum às sociedades protegerem as crianças de ameaças, por se tratar de grupo de risco quanto à vulnerabilidade física e psicológica e quanto a sua consciência tenra, em formação. Foi assim, como ameaça, que Obama foi tratado quanto ao discurso, em uma sociedade na qual há uma mística da presidência com a qual parece inconciliável imaginar que perigos circundariam uma fala presidencial no primeiro dia de aula.
Em particular sendo primeiro ano de mandato, é em si inédita e poderosa lição o fato de haver um afro-americano, de nome árabe muçulmano, casado com uma mulher negra, para ser visto, enxergado, como presidente e símbolo da soberania democrática da nação por crianças em todo país. Uma das técnicas mais frequentes de racismo, como de toda discriminação, é a invisibilização das vítimas. Por um lado, como ensina Erving Goffman, a estigmatização ocasiona um enfraquecimento da pessoa alvo da discriminação pelos constantes ataques a seu “eu”, em busca de despersonalizá-la, reduzindo seu ser ao estigma. A violência desse ataque constante deteriora a identidade, tornando-a manipulável, pronta portanto para a próxima vitimização.
A técnica complementar é a invisibilização e o silenciamento das vítimas. Suprimir da cena pública a presença e a imagem das pessoas discriminadas, ou estigmatizadas, equivale a um aniquilamento permanente da autoestima. No caso das crianças, a inexistência de oportunidades em que possam reconhecer imagem semelhante à sua em pessoas bem-sucedidas, detentoras de poder, na mídia, efetiva um sentimento de não existência ou, minimamente, de desimportância, de insignificância. Essa invisibilização usualmente ocorre também em seu cotidiano, quando sempre há uma criança “mais bonita” para ser escolhida para apresentar-se em público em ritos escolares.
O discurso, finalmente pronunciado, foi apontado como “inócuo” por alguns, e as críticas mais acerbas não foram retiradas. Nem inócuo nem doutrinador. Ao pronunciar-se plenamente em sua identidade e história de vida, a poderosa mensagem que Obama transmitiu foi que a educação desempenhou papel crucial em sua vida e na de sua mulher, Michelle. Até aí, diriam, essa era a parte inócua ou mistificadora de um promotor de si mesmo, como disseram alguns. Mas Obama trouxe as dificuldades vencidas, o empenho de sua mãe, falando de si mesmo como imigrante na Indonésia, do desejo, então de sua mãe, de manter sua educação atualizada com a realidade das escolas norte-americanas, lembrando a dualidade cultural que vive o imigrante.
Para além da própria imagem e história de vida, com a qual atingiu as crianças negras, árabes, muçulmanas, não cristãs e cristãs, o presidente chamou à cena e ao foco de luz, como se fosse um mestre de cerimônias, as crianças tradicionalmente invisibilizadas por serem filhas e filhos de famílias monoparentais; de pais sem escolarização; de famílias imigrantes, das que ainda não dominam o inglês. Lembrou as crianças com doenças graves e as que vivem em bairros violentos. Clamou a que não desistam da escola, mas que ofereçam o melhor de si.
Falou de si mesmo como um perdedor que teve segundas chances, tocando no delicado tema, dentro da cultura norte-americana, de ser um loser e recuperar-se, como a prevenir o bullying insistentemente praticado com o uso dessa categoria. Sublinhou que podem pensar em sucesso para além de ser um astro do basquete ou celebridade instantânea, mas naquilo que exige esforço, ainda que não prazeroso. Mas também destacou que não só de premiados escritores vive a comunicação escrita – ou a ciência, de cientistas geniais -, o que não deve desanimar o estudo.
Ao trazer para seu discurso o pequeno Barack da Indonésia, e também o que o pai abandonou, fez, do menino que foi, o veterano a receber os calouros naquele dia, empreendendo um diálogo com crianças e suas famílias, que não são visibilizadas, visibilizando-as mundialmente. Agora é esperar que seu governo possa superar os contrastes deixados pela política educacional de Bush, como pelo programa No Child Left Behind (Nenhuma criança deixada para trás), nome que dificilmente melhor expressaria a denegação do que promoveu e que, em plena semana de lembrança do 11 de Setembro, Obama tenta reverter.
*Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da USP e da Universidade Metodista de São Paulo. É expert da Unesco para a Coalizão Internacional de Cidades contra o Racismo e a Discriminação
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