Nem todo lugar é lugar de preto

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Na última terça, 15 de julho, a jornalista Lília de Souza (foto) precisou prender seu black power para tirar o passaporte. Segundo o site Extra, a polícia federal justificou que padrões internacionais precisam ser seguidos na fotografia do passaporte e que cabelos volumosos, assim como cabelo no olho ou excesso de adornos, não são permitidos. Sem querer discutir protocolos de segurança, me atenho à percepção de Lília, de ter sofrido racismo. E que essa percepção, mais que genuína, não pode ser desconectada do racismo a que negras e negros somos submetidos cotidianamente. É tanto, que chega a ser natural.

Essa semana participei de um debate sobre reforma política. Uma jovem negra, preocupada em levar o debate à maior parte da população, perguntou como a campanha estava sendo feita na periferia. Ela não mora na periferia e foi muito assertiva na pergunta. Uma outra participante, tentando ser solidária, perguntou em que bairro a jovem negra morava. Se a preocupação com a periferia tivesse vindo de uma pessoa branca, ela não teria sido mal interpretada. Esse racismo, sutil, implícito e difuso é o mais comum. Afinal, pode ser uma simples confusão de quem sentiu o racismo! Ou um protrocolo de segurança, mero procedimento. Mas ele acontece todos os dias. Fere. Machuca. E reafirma, com crueldade, que nem todo lugar é lugar de preto. Principalmente se sua aparência não for “aceitável”. Imagino que cabelo alisado e roupas de grife atenuem a abordagem racista. Com meu cabelo crespo e as roupas de que gosto, todos os dias sou lembrada de que bairro central, casa grande, cafés e restaurantes de classe média; ser professora universitária não são pra mim.

Se parece pouco palpável, descrevo três cenas:

1) Na porta de um café, esperando uma amiga sair do banheiro. Três pessoas me fizeram pedidos de forma rude, em menos de cinco minutos. Com a resposta: “eu não trabalho aqui” e um sorriso desconcertante ninguém sabe onde enfiar a cara! Porque a pessoa entende o que aconteceu;

2) Abrindo o arquivo com uma apresentação, no auditório de uma universidade pública, alguém me pergunta onde estava uma outra pessoa, imagino que funcionária da universidade. Eu respondo que não sei, que não trabalho lá. E a pessoa se assutsa, perguntando, em tom de bronca, por que estou mexendo no computador. Eu respondo que vou fazer uma apresentação em alguns minutos. A pessoa desmonta, olha o folder do evento e solta um: “Ah! Você é a Bianca Santana!”

3) No parque, com meu bebê de olho claro no sling: “Sua patroa deixa você carregar ele assim?”

Descrevi três pra não cansar ninguém. Mas tenho tantas outras na memória! Desde a infância… Muitas até que nem percebi na hora. E depois do meu exercício de memória (doloroso, viu), faço um pedido: você se lembra quando foi racista com uma preta ou um preto? Não precisa contar pra ninguém. Só tenta não repetir.

 

Jornalista especialista em educação e cultura digital, professora da Faculdade Cásper Líbero, idealizadora da Casa de Lua

 

Fonte: Brasil Post

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