Nina da Hora hackeia o racismo e transforma a computação

Cria de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, cientista quebra os estereótipos das redes sociais e pretende abrir livraria antirracista

FONTETerra, por Elisa Fontes
A pesquisadora Nina da Hora (Foto: Ana Branco / Agência O Globo)

Ainda criança, Ana Carolina da Hora pulava da cama aos sábados de manhã, por volta das 7h, para assistir programas sobre ciência, computação e a vida universitária na TV aberta. Curiosa e empolgada, Nina, como gosta de ser chamada, desvendava o que tinha por trás dos botões e peças de rádio e outros aparelhos eletrônicos que desmontava em casa.

“Eu falava para a minha mãe que ia consertar e na verdade estragava tudo. Mas o meu interesse era saber o que tinha dentro. Porque [brinquedo] era muito caro. Fui brincar com Lego quando eu fui dar aula de programação, com 20 anos”, relembra, contando como aproveitava o tempo fora da escola. 

A menina criada em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, não esperava alcançar a carreira que tanto almejava antes mesmo dos 30 anos, pouco tempo depois de terminar sua graduação em Computação na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Cercada por mulheres que sempre a incentivaram, Nina hackeou o sistema e quebrou barreiras com muito estudo e dedicação para se tornar cientista. “Tentar vencer a vida com os estudos se tornou muito difícil com o TikTok, mas eu estou tentando”, brinca.

Hoje, aos 26 anos, não só integra o Conselho de Segurança da rede social chinesa como também é pesquisadora bolsista do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e coordenadora de tecnologia da Redes da Maré. Nina virou referência em segurança digital por combater o racismo algorítmico e é convidada para diferentes congressos e eventos nacionais que antes sonhava em participar.

Segundo ela, hackear ganha novo significado quando se trata de mostrar que a tecnologia pode ser aliada na luta antirracista. “Ser hacker é um comportamento, é um modo de viver. Não é muito ligado à ferramenta que você usa, o que você está programando. Eu acho que, de fato, a minha família sabe ser hacker. É um conjunto de coisas que me incentivaram a correr atrás e a estar nessa área, principalmente essa resiliência de correr atrás do que elas queriam”, pontua sobre o papel da mãe, da avó e das tias na sua vida.

Antirracismo na prática

Nina juntou seu gosto pela tecnologia com a necessidade de se inserir nesse contexto enquanto mulher negra. “Nós, mulheres, precisamos sempre provar que podemos estar nessas áreas mais técnicas. Uma coisa que prestei atenção no início são as perguntas como ‘você tem certeza do que está falando?’”, conta.

Para ela, a função de trazer avanços tecnológicos não tinha como se descolar de questões raciais e de gênero que já a cercavam na sociedade e que são refletidas nas inteligências artificiais reforçando estereótipos e padrões brancos. 

Desde a adolescência, a cientista buscou participar de comunidades científicas, como IEEE (Instituto de Engenheiros Eletricistas e Eletrônicos), uma das maiores do mundo e voltada para humanização e difusão de conhecimento. No entanto, durante boa parte dos 10 anos que tem de carreira, ouviu dos próprios colegas de profissão que discutir esses temas não era relevante.

“No início foi difícil porque eu vivia, e ainda vivo, em espaços dentro da área da computação em que as pessoas não querem pensar sobre isso. Mas, agora que está dando muito problema, as pessoas da computação e da engenharia querem pensar. E é algo que eu já questionava.”

Esse apagamento, segundo a cientista, parte de um olhar muito eurocêntrico e ocidental que existe tanto na computação quanto na academia. “Se não tivéssemos pessoas negras nesses espaços, não teríamos essa construção. Não vai ter como resolver isso se não houver um grande debate na sociedade e uma espécie de reunião das áreas [exatas e humanas]. Isso não vai ser resolvido só pelo direito e pela computação”, observa.

Para além do meio digital, Nina já enfrentava o problema do racismo no seu dia a dia. O episódio mais recente aconteceu dentro de um espaço que deveria, segundo ela, ser acolhedor e que guarda histórias de pessoas e autores negros. A cientista foi às redes sociais denunciar, no início deste mês, que estava na companhia da irmã quando foi seguida por um segurança, que até mesmo a impediu de ler os livros expostos, dentro da livraria Travessa, no Leblon, zona sul da cidade do Rio de Janeiro. 

Nina diz que ficou mais tranquila com o apoio que recebeu após a repercussão do caso. Todo sentimento provocado pela violência que sofreu despertou ideias e a vontade de melhorar a experiência nas bibliotecas e livrarias. Para isso, a cientista pretende construir a própria livraria antirracista e promove uma vaquinha online para tirar o projeto do papel.

“Como diz a Assata Shakur (poetisa, militante dos Panteras Negras e tia do rapper Tupac Shakur, hoje exilada em Cuba), a gente não combate a opressão apelando para a moral do opressor. E um dos caminhos é ressignificar o que a gente sofre diariamente. Então denunciei formalmente, fiz o BO, apareceram outros casos que estou incluindo, e quero a indenização por questões de danos morais à minha imagem, ao meu psicológico”, afirma.

Em nota divulgada nas redes, a Travessa se manifestou sobre o caso dizendo que “não compactua com nenhuma prática discriminatória de qualquer natureza”.

Conexão com os seus

Fora do universo da computação, a programadora gosta de estar entre amigos, ver filmes e séries, passear com seus cachorros e projetar o futuro da sua carreira. Nina se diz otimista, mas ainda preocupada com os rumos que a tecnologia tem tomado e de que forma é utilizada.

Ter referências de sua ancestralidade foi fundamental para se conectar mais ainda com seu trabalho e consigo mesma. No podcast Ogunhê, que lançou em 2020 e saúda o orixá Ogum, Nina conta as histórias e os feitos de cientistas africanos, fora do eixo americano e europeu, que são pouco lembrados pela comunidade acadêmica.

“O podcast que pensei foi muito no sentido de um diário para eu não desistir da área, do curso, dos conceitos e de tudo o que eu queria fazer. Quando eu fui descobrindo outros cientistas negros e outras cientistas negras, eu fui anotando a história deles e guardando para mim. Todas as histórias passavam por uma luta coletiva”, ressalta.

Mesmo diante de tantos desafios, Nina acredita que divulgar o conhecimento científico e ter cada vez mais pessoas negras trabalhando com tecnologia podem transformar essa realidade marcada pela desinformação. Depois de colocar em prática o podcast “Computação da Hora”, em que ensina ciência de forma descomplicada e democrática na internet, a cientista se permite sonhar ainda mais alto.

Ela conta que deve lançar em breve um instituto de pesquisa para emancipar os direitos e a segurança digital no Brasil: “a gente tira das mãos da maioria, que são homens brancos, e tenta reposicionar o debate colocando nas mãos de pessoas negras e indígenas, sobre temas que nós podemos falar”.

Nina também atua em outras frentes, sendo membro da Comissão de Transparência das Eleições no TSE (Tribunal Superior Eleitoral), e escreve sobre a relação entre tecnologia e sociedade para o Canal Futura e no portal do MIT Technology Review Brasil, publicação da prestigiada universidade norte-americana Massachusetts Institute of Technology.

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